28 de outubro de 2005

DA GELFA, QUEM SE LEMBRA?

(obs - clica sobre a imagem para obter ampliação)
A região da Gândara tem a sorte de ser a inspiradora de numerosos livros que a focam e estudam em variados aspectos. Assim é, felizmente, desde há bastante tempo Creio que esses livros todos já alindam uma rica estante, a contrastar com a sorte da Bairrada, muito pobrezinha em comparação, pois só em anos próximos conseguiu acordar, beijada por algum príncipe desencantador…

Ora estas duas regiões (ou sub-regiões, se se preferir), dada a sua contiguidade e relativo entrosamento em múltiplos aspectos, hão-de ter sempre, por isso mesmo, algo a «dizer» uma à outra. E acontece que estou de novo a evocar memórias da minha primeira infância vivida em Bustos. Acabo a perguntar: da Gelfa, quem se lembra?

De facto, nos remotos anos da minha meninice (terceiro decénio do século anterior), eu ouvia falar amiúde da Gelfa. Era a terra dos gelfeiros, gente que vinha do Tabuaço, do Rio Tinto e cercanias, transpondo o rio Boco para chegar à nossa terra. Aconteceu, porém, que depois aquela referência toponímica desapareceu parece que de todo e passou a existir tão-só a Gândara.

A última vez que a vi citada foi na dissertação de doutoramento de Fernanda Delgado Cravidão, «A População e o Povoamento da Gândara – Génese e evolução», Coimbra, 1988), onde, na pág. 28, aparece o mapa que reproduzimos. Ali vemos a Gelfa situada entre os concelhos de Mira e Vagos. Nota importante: a Doutora Cravidão baseia-se em mapa da «divisão regional» que se encontra na obra de Amorim Girão, «A Bacia do Vouga», 1922. Curioso: ali se indicam outras denominações regionais agora vetustas. Passou a imperar a Gândara exclusivamente.

Em data posterior, a conversar com a Doutora Maria Alegria F. Marques – que tem estudado com especial interesse as terras gandaresas – pude confirmar-lhe as minhas recordações de infância e a existência, então, da Gelfa. Manifestei-lhe a minha estranheza pelo seu inexplicável desaparecimento. Creio tratar-se de uma denominação antiga ou antiquíssima e que parece repetir-se uma vez, na toponímia conhecida, na zona de Viana do Castelo.

A curiosidade levou-me a folhear obras de consulta. No Dicionário de Morais, na estimada 10ª edição, 1953, encontrei: «Gelfa, s. f. Ter. de Coimbra. Acção de pastar; pastagem: “o gado anda à gelfa” Gir. Velha, geba.»
«Gelfo, s. m. Pop. Gebo, velho.»
«Gelfos, s. m. pl. Pai e mãe.»

Isto casa bem com o aspecto marcadamente rústico e pobre das pessoas que via chegar da outra margem do rio (que divide freguesias, concelhos e distritos) até Bustos, para compras na feira ou em algumas lojas. Admito que os gelfeiros tenham sido pastores durante gerações, em concatenação eventual com a hipótese – a mais defendida, suponho, pela Doutora Maria Alegria – de a origem do topónimo que identifica a nossa terra apontar para «pastagens» e não, noutra hipótese, para lugar de incinerações fúnebres.

Enfim, a questão que se levanta resume-se a saber, isto é, a perguntar, que sorte terá tido a Gelfa, localizável numa ponta da actual Gândara. Alguém pode explicar?

Arsénio Mota


1 comentário:

  1. Anónimo15:11

    Pode não ser a única razão, mas é certamente um dos fortes motivos e uma boa explicação. Muito poucos gostarão de viver com uma verruga, cheia de pelos, na cara, com uma corcunda, ou com qualquer outra imperfeição. A Gelfa, ou melhor, ser gelfeiro era uma estampa negativa, um estigma, um insulto à dignidade, à honra ou ao bom-nome. Não era motivo de orgulho. Ninguém tinha gosto em ser tratado com desprezo ou como lixo humano só porque nasceu do outro lado do rio, do outro lado dessa fronteira imaginaria que separava os bons dos maus, até porque bons e maus Homens existem em ambos os lados.
    Em criança não gostava que me chamassem gelfeiro, não daquela forma. Quando os argumentos faltavam aos não "gelfeiros" era essa estampa que servia para justificarem a razão ou o querer calar os "gelfeiros": "És um gelfeiro", "és um gelfeiro, és d'areia" (os gelfeiros também eram chamados "os da areia" [!!!]), por isso, e mal por mal, aceitava-se e utilizava-se o rótulo de "gandarês". Outros tinham a pretensão de ser "bairradinos", porque estão num enclave com características mais próximas dessa região e porque é mais elegante... Mas isso são outras questões e a questão é: o estigma de ser gelfeiro ficava desde criança e os adultos não insistiam, nem tinham orgulho em transmiti-lo.
    Eu lembro-me da Gelfa. A Gelfa existe e ultimamente sinto-me bem na pele de gelfeiro. Pena tenho de já não viver lá.

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