6 de abril de 2007

'PÃO E BELEZA'

'7 Passos'
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Nas piores páginas do Quixote permanece vivo o diálogo infindável e universal do espírito e da matéria, e é isso que nele importa fundamentalmente. Ora Camões não levantou o pano a nenhum mistério. Deu a volta ao mundo, como Fernão de Magalhães, a cantar as nossas glórias. E as nossas glórias passaram...

Mas está bem, aceitemos Camões. E a seguir? A seguir vêm dois séculos em que ninguém sabia o que era um verso! Lá aparece Garrett por fim a estudar o romanceiro, a aprender de novo a magia das coisas, e consegue escrever as Asas Brancas. Mas, ao lado, Castilho continua a rimar arcadicamente, e Herculano permanece granítico, a fazer cruzes quebradas como um mau pedreiro. Ora a arte e o pensamento implicam um afinamento contínuo de processos, um saber cada vez mais sólido e desanuviado. Perdendo-se a experiência passada, é natural que tenha de se recomeçar com meios simples e primários. E o progresso é impossível. De resto, esse crescer contínuo, além doutras vantagens, evita-nos o dissabor de certas adaptações ou imitações serem tão grosseiras e calvas. Aflitos, os nossos artistas e pensadores, em certos momentos, começam a correr para apanhar o comboio de uma actualização universal. E como vão sem bagagem, nus e ingénuos, o resultado é no fim a roupa que vestem em Paris tapar-lhes o melhor da personalidade. É claro que uma verificação destas só é positiva se puder servir o futuro. Mas é exactamente no futuro que eu penso.

Só há grandes literaturas onde o povo é permeável à cultura. Onde se leu a Bíblia à lareira durante centenas de anos, e onde as Mil e Uma Noites não destoam ao lado de uma charrua. O nosso povo, que é donde saíram os nossos maiores, precisa dum banho lustral de pão e de beleza. E então, sim! Então cada escritor português que vier não terá apenas para descrever, e grossamente, as pitorescas romarias da sua aldeia.

Miguel Torga, Publicações D. Quixote, Diário Vols. I –IV, [Diário III, Coimbra, 6 de Abril de 1944], 2ª edição integral,1999.

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