25 de abril de 2007

25 de Abril - do Antes

DOA
Andam cavalos à solta,
Loucos, em correrias sem destino,
Duendes do presente
Sem passados,
Mortos-vivos que não gritam
E que transitam …
Cavalos alados,
Ciganos de várias tribos,
Animais civilizados
Que regressam a estados primitivos,
Testemunhas de vários sóis,
Navegantes dos sertões,
Agonizando a ração,
Pasto para feras
Com bocas sujas e dentes cariados,
Coitados!...
Mandados por carniceiros com galões,
Carne para canhão
Metida num vagão …

Doa (Moçambique), 1972
in, Carlos Luzio, pescador de sonhos – POEMAS DE GUERRA, edição póstuma, Bustos, 2005
*

Poemas de Guerra...[1]
«Há tantas histórias para contar, tanta que não se contou. Está uma página por escrever, algures dentro de nós. É o grau zero da escrita. Mas vós, ó cúmplices pelo silêncio e pela hipocrisia, calai-vos de uma vez por todas »[2]

O conjunto de poemas em torno da questão da guerra, inicia-se, curiosamente (ou propositadamente) com um hino à liberdade. Ainda escrito em Bustos, antes da partida para Moçambique, «Liberdade» é um retrato da despreocupação, da espontaneidade e da inocência de um mundo que o poeta observa e ao qual parece já não pertencer. Existe uma clara oposição entre um estado de liberdade associado à infância, vivida de forma despojada mas feliz, e as prisões a que estão submetidos os adultos, vítimas de destinos traçados por mãos desconhecidas.
Poesia intervencionista e panfleto pacifista? Talvez não fosse essa a intenção ! No entanto, é certo que a palavra aparece como uma tentativa de compreensão de uma situação absurda, já que ultrapassa o domínio da vontade própria.

No leque de poemas que integram a temática da guerra deixa transparecer uma consciência da tragicidade daqueles anos. Composições como «O Soldado» (1 e 2), escritas ainda em Bustos, retratam o desalento e a tristeza de todos aqueles que, demasiado jovens, viram um dia a sua vida transformada numa teia tecida por mãos alheias ao sofrimento e ao medo:

«Um dia o destino o levou
Para onde ele não queria
Para uma guerra que sonhava
Mas não via»

Com a partida quase sonâmbula, rumo a essa prisão cuja «janela nunca se abriu », viria também a inevitável confrontação, ainda que demasiado precoce, com a morte e com todos os sentimentos a ela associados. Neste sentido, é importante salientar a forte consciência de Carlos Luzio face às transformações que o convívio quer com a morte, quer com o acto de matar para não ser morto, operam naqueles que outrora carregavam no peito uma imensidão de sonhos e de esperança. Na guerra parece não sobejar espaço para o sonho. Talvez porque a realidade seja tecida de um medo paralisante que reconduz o homem ao seu estado mais primitivo. No poema “Doa”, o campo de batalha é comparado a “um pasto para feras / com bocas sujas e dentes cariados” onde os homens são “animais civilizados / que regressam a estados primitivos. Mandados por carniceiros com galões, / Carne para canhão/ Metida num vagão”. Ao longo de todo o poema ecoa um profundo grito de revolta e de indignação que com o passar dos anos se torna menos contundente porque o distanciamento temporal ameniza as memórias mais sombrias.

No entanto, «há guerras que não acabam nunca»[3]. Há conflitos que a memória não apaga porque ficaram, para sempre, tatuados no mais íntimo de quem as viveu e a elas sobreviveu. Prova incontornável destas memórias que perduram, são os poemas escritos longos anos após o fim da guerra, deixando adivinhar uma necessidade de verbalizar e de compreender um passado que tantas vezes se tenta declinar! As viagens ao passado são parte integrante daqueles que lá deixaram partes de si e funcionam como uma tentativa de busca de um tempo perdido. E para tal, a palavra sempre se revelou um excelente veículo, apesar de nem sempre ser a salvação, como disse Marguerite Duras!
...
[1]Extraído de «Uma análise» ao livro de poemas “Pescador de Sonhos», de Carlos Luzio.
[2] Manuel Alegre, Rafael
[3] Manuel Alegre, Rafael, p.65.

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