7 de março de 2007

A ESCOLA COMO ALTAR


Quando ponho diante de mim a vida destes homens curvo-me com admiração e espanto. Os construtores de Bustos eram homens que contrapunham à ideia de linhagem os valores da liberdade, do trabalho e da honra. Em alternativa à religião postulavam a escola e o conhecimento. Vivendo numa sociedade com mais de 80 por cento de analfabetos eles acreditaram fervorosamente que pelo estudo e pelo ensino criariam uma nova sociedade e um novo homem.
A República não foi apenas a revolução que refundou Portugal e as suas instituições, foi um projecto, um sonho visando modificar a ordem cultural existente. Também os republicanos de Bustos tomaram a escola como altar, e nem quando chegou a ditadura salazarista deixaram de lutar por esse grande desígnio.

Um dos momentos mais significativos da afirmação dessa fé republicana em tempo de ditadura aconteceu em 1934 quando a União Liberal de Bustos – uma associação criada em 1932 tendo “por fim organizar e acompanhar enterros civis e mais actos de interesse colectivo, mas puramente liberais e civis” (estatutos - artigo 1º) –, organizou uma festa escolar a propósito da inauguração de um conjunto de quadros pintados e oferecidos por Hilário Simões da Costa.
Era então presidente da U.L.B Vitorino Reis Pedreiras, sendo coadjuvado por Manoel Francisco Domingos e Manoel Rosário. A oferta de Hilário Costa, também ele membro da União Liberal, motivou uma manifestação de republicanismo como há muitos anos não se via em Bustos. O jornal “Alma Popular” descreveu assim o evento:

EM BUSTOS: FESTA CÍVICA

“Para solenizar a inauguração de dez artísticos quadros, pintados e oferecidos pelo nosso amigo e colaborador, Sr. Hilário Simões da Costa, realizou-se, em Bustos, no penúltimo domingo, uma encantadora festa, em que tomaram parte professores e alunos das quatro escolas da freguesia.
Seriam 15 horas quando, junto do novo Edifício Escolar, se organizou um cortejo cívico que, acompanhado pela Banda de Música do Troviscal, se dirigiu para a Escola do sexo feminino, onde foram colocados dois quadros. As alunas recebem os visitantes com flores, entoam a Portuguesa e incorporam-se depois no cortejo que de novo se põe em marcha para a Escola do sexo masculino, na qual são inaugurados os restantes quadros e tem lugar a sessão solene.
Presidiu o Sr. Dr. Manuel dos Santos Pato, ladeado pelos Srs. Presidente da Junta de Freguesia, Dr. Carlos Pereira, Manuel Joaquim de Oliveira Sérgio, Professorado, etc.
Aberta a sessão foram distribuídos pelas criancinhas pobres numerosos artigos escolares, tais como livros, cadernos, lousas, canetas, etc., ofertados pela União Liberal de Bustos.
Alguns alunos recitam poesias alusivas ao acto, depois do que, fazendo a apologia da Instrução e prestando homenagem aos Sr. Hilário Costa, usaram da palavra os Srs. Manuel Francisco Rei, o presidente da Junta de Freguesia a quem se deve a construção daquele Edifício Escolar; Vitorino Reis Pedreiras, presidente da U.L.B.; professor António de Jesus Craveiro; professor Albino Sarabando da Rocha; e, por último, o Sr. Hilário Costa que agradeceu as saudações que lhe haviam sido dirigidas e prometeu continuar a interessar-se pelos progressos da sua terra.
Encerrada a sessão solene, em que foram entusiasticamente vivados o homenageado, a Instrução, a Pátria e a República, é servido um lunch a todas as crianças. E a Junta de Freguesia, associando-se à festa, mandou plantar 4 árvores no recinto da Escola.
Durante o resto da tarde, a excelente Música do Troviscal, sob a regência do maestro José de Oliveira, fez-se ouvir com geral agrado.
Como nota discordante, apenas o tempo agreste e chuvoso obstou a que todo o povo pudesse ouvir, na sessão solene, os recitativos das crianças e os patrióticos discursos dos oradores.
Apesar disso, foi uma festa encantadora, consagrada à Arte, festa de crianças, sorrisos e flores, absolutamente estranha a qualquer política partidária, o que por certo deixou as melhores impressões em todos quantos a ela assistiram.
(Alma Popular, 4.Maio,1934, 1ª página)




ACTA DA SESSÃO SOLENE DA FESTA ESCOLAR
Apesar do livro de Actas da União Liberal de Bustos ter sido apreendido pela polícia política (PVDE) em 1936, um rascunho da acta descrevendo a “Festa Escolar” foi cuidadosamente guardado pelo então presidente da associação. Aqui fica a respectiva transcrição:

“No dia 22 de Abril de 1934, pelas 14 horas, nas escolas primárias de Bustos onde se achavam o presidente da União Liberal, Hilário Simões da Costa, professores, Dr. Manuel dos Santos Pato, presidente da junta de freguesia, muitos membros da União Liberal, as crianças das escolas e muito povo.
O nosso presidente propõe para presidir aquela sessão solene o Dr. Manuel dos Santos Pato. Este, ocupando a presidência, faz-se secretariar pelos professores e pelo presidente da junta e declara aberta a sessão. Ressoa uma salva de palmas e faz-se o descerramento dos quadros artísticos e históricos que o nosso prezado consócio Sr. H.S.C pintou expressamente para as escolas de Bustos.
A música, postada dentro do edifício escolar, rompe com os seus acordes musicais enquanto as crianças com seus cantos e flores dão ao momento solene que decorre um brilho inexcedível. As crianças formadas em semi-círculo aguardam o momento da distribuição dos prémios que a União Liberal propôs oferecer às crianças mais necessitadas. Procede-se à chamada das crianças indicadas na lista dos contemplados, tendo o nosso presidente entregado, a um por um, os donativos.

Terminado este acto algumas crianças recitam poesias alusivas ao acto agradecendo em nome dos contemplados os favores prestados pela União Liberal às criancinhas pobres das escolas, a quem deviam o prazer daquela festa.

O senhor presidente dá em seguida a palavra a Manuel Francisco Rei que em palavras breves faz o elogio da instrução, dizendo-se satisfeito por ter sido ele o fundador daquela escola terminando por homenagear H.S.C, nosso consócio e ilustre benemérito da instrução. Usa depois da palavra o nosso presidente pondo em foco os fins altruístas da nossa sociedade, cujo lema tem por fim instruir o povo fazendo cidadãos conscienciosos e rectos, libertados de preconceitos erróneos onde o dogma impera, chamando-os à vida prática. Dirigindo-se aos professores e às crianças mostra quanto nobre é a sua missão, pedindo às criancinhas que estudassem e que amassem os professores pois que eles eram os seus pais espirituais, terminando com palavras de grande apreço para o insigne benemérito H.S.C, que se orgulha em ter na sua sociedade.
Fala depois o professor Craveiro que agradecendo à U.L e ao senhor H.S.C as grandes e honrosas dádivas com que brindara as crianças e a escola, e agradeceu em nome dos contemplados.
Fala ainda o professor Sarabando da Rocha que, com palavras magistrais de orador, mostra quanto bela e magnânime é a instrução, tendo palavras de louvor e incitamento para a União Liberal e para H.S.C.
Fala por último Hilário Simões da Costa que comovido agradece as palavras de louvor a ele dirigidas e diz que a simples dádiva com que dotou as escolas de Bustos são simples lampejos da sua alma apaixonada pela sua terra e pela instrução, e promete continuar na senda do bem para poder dar satisfação aos impulsos do seu coração. No final todos os oradores foram sempre muito aclamados dando-se vivas a Hilário Costa, à Instrução, à Pátria e à República.
Em seguida procede-se à plantação das árvores no recinto das escolas cantando e recitando as crianças até ao seu desfile, tendo, por fim, sido distribuído pelo nosso presidente um lanche a todas as crianças das escolas. Depois de não haver mais nada a tratar deliberou-se lançar na acta um voto de louvor aos sócios da União Liberal que concorreram com os seus obulos para esta festa, aos professores primários e a todos aqueles que por qualquer forma contribuíram para o prestígio da União Liberal.”

Bustos 23 de Abril de 1934


A ESCOLA COMO MÃE

Mário Reis Pedreiras, então aluno da escola de Bustos, foi uma das crianças que declamou algumas quadras alusivas ao momento. Estas tinham sido escritas pelo pai e presidente da União Liberal, Vitorino Reis Pedreiras. São de uma ingenuidade tocante e bem representativas do ideal que empolgou a geração dos nossos avós.

Companheiros, a Escola
É como a nossa mãezinha
Ela ensina e consola,
Como o sol que nos ilumina

De suas salas iluminadas
De esperanças mais sedutoras
Ela é como um castelo de fadas
De crianças torna homens e faz senhoras

Companheiros, a Escola
É o pão da instrução
Com a graça de uma esmola
Dá luz e dá razão

Ó Escola, mãe espiritual
Que tens dado tanta luz
Fazes grande o Portugal
Grandes louros tu tens juz!

Agradecemos os favores
À União Liberal
Vivam os senhores Professores!
Viva a República! Viva Portugal!

Nota final: Os quadros oferecidos por Hilário Costa foram retirados das escolas poucos anos depois (1937) em consequência de “ordens superiores”. Nas paredes escolares apenas eram admitidos os retratos de Salazar e Carmona. Também a União Liberal de Bustos foi vítima da repressão, tendo a polícia política apreendido o livro de actas, estatutos e a bandeira da associação cívica (1936). Apenas com seis anos, Arsénio Mota assistiu ao momento em que quatro polícias chegaram à Barreira e confiscaram a bandeira, então à guarda de seu pai, episódio que muito o marcou e motivou a escrita do magnífico conto “A Bandeira Escondida” (edição Campo das Letras,1998).

Belino Costa

3 comentários:

  1. Que texto e que lição dos nossos pais e avós de Bustos!
    Hoje é fácil defender a instrução, a cultura e a liberdade de pensamento, mas em 1937 Portugal já vivia sob a ditadura salazarista, imitação serôdia do nazismo alemão (Hitler) e dos fascismos italiano (Mussolini) e espanhol (Primo de Rivera e Franco).
    São lições como esta que nos obrigam a trazer à memória e a dar expressão viva às raízes de Bustos!

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  2. Anónimo23:30

    Para a construção do muro de vedação para digo, do recinto da Escola Primária e do levantamento das paredes da parte central do referido Edifício da Escola, foram apresentadas diversas propostas sendo estas obras adjudicadas ao senhor António da Silva Terra pela quantia de mil setecentos sessenta e seis escudos por ser a sua proposta a mais vantajosa apresentada. E tendo ficado deserta a praça para a arrematação das restantes obras foi deliberado pô-las de novo em arrematação e fazer afixar para o efeito os respectivos editais. Foi mais deliberado autorizar o Presidente a ordenar os pagamentos seguintes: a José de Melo (Palhaça) da quantia de dezasseis escudos de quatro plátanos que forneceu a esta Junta para arborização do recinto de recreio do Edifício Escolar; (…)
    [Acta da Sessão de 22.04.1934 da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia]

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  3. Anónimo23:45

    O executivo da Junta adquirido 4 plátanos destinados à 'arborização do recreio'da sscola, conforme consta da rsepectiva acta.
    ...
    "Para a construção do muro de vedação para digo, do recinto da Escola Primária e do levantamento das paredes da parte central do referido Edifício da Escola, foram apresentadas diversas propostas sendo estas obras adjudicadas ao senhor António da Silva Terra pela quantia de mil setecentos sessenta e seis escudos por ser a sua proposta a mais vantajosa apresentada. E tendo ficado deserta a praça para a arrematação das restantes obras foi deliberado pô-las de novo em arrematação e fazer afixar para o efeito os respectivos editais. Foi mais deliberado autorizar o Presidente a ordenar os pagamentos seguintes: a José de Melo (Palhaça) da quantia de dezasseis escudos de quatro plátanos que forneceu a esta Junta para arborização do recinto de recreio do Edifício Escolar; (…)"
    Acta da Sessão de 22.04.1934 da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia)

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