7 de fevereiro de 2007

QUEM SE LEMBRA DE CHICHARRO DE PAR?

A nova edição dos “Guardiãos (ou Guardiões) dos Sabores” teve lugar no dia 20 de Janeiro em casa do Fernando Silva, na Palhaça. Para aqueles que não puderam comparecer a esta assembleia, tais como os nossos conterrâneos residentes nos Estados Unidos (que já se queixaram de não poderem provar as nossas ementas tradicionais) tenho a dizer que desta vez comemos um prato de grande tradição local.

charros de par e camarinhas, de burro
Fechem os olhos e revejam na memória o chegar, a uma rua qualquer da nossa terra, de uma pessoa com um burro carregado de caixas de “chicharro de par” salgado ou fresco vindo de Mira ou da Vagueira. Quem se lembra das nossas mães comprarem um par de chicharros? Esses eram vendidos aos pares, enquanto as sardinhas e os carapaus compravam-se aos quarteirões ou fracções de quarteirões (naquele tempo, meio quarteirão eram treze). E quem se lembra de comprar, de vez em quando, camarinhas? Eram brancas ou rosadas, frescas e ligeiramente amargas, mas para os miúdos eram memoráveis e exóticas. Há vinte anos que não vejo camarinhas, quando nessa altura, as encontrei nos pinhais entre Mira e Tocha. Imagino que muitos dos mais novos da minha terra nem sabem o que são camarinhas pelas quais tanto ansiávamos quando éramos pequenos. Estas também vinham de burro das “areias (como se chamavam as terras para os lados do mar).
Pois o Fernando Silva foi à Vagueira e trouxe charro de par (o termo “charro” mudou com o tempo, mas garanto que não fumámos o peixe) e salgou-o durante três dias. Os charros que se compravam quando eu era pequeno eram maiores mas, infelizmente, os chicharros modernos já não têm o tamanho de outrora (este fenómeno de diminuição de tamanho e maturação sexual precoce de espécies é comum em peixes sobre-pescados).

guardiães/guardiões cumpridores
Estiveram presentes na ceia de “escorrido” de charro, batatas e grelos o Fernando Silva, Chico Pedreiras, Manuel Romão, António Sá, o “venerável” Agostinho Pires, Ulisses Crespo, Óscar Santos, Amândio “Azeiteiro” Ferreira, Milton Costa, Morais Aleixo, Mário Neto, José Carlos Santos e Paulo Barata.

Escorrido queria dizer antigamente que a comida era escorrida antes de a pôr na travessa ao contrário da sopa, por exemplo, que não se escorria. As pessoas muitas vezes usavam o termo “comida de azeite” porque se rega a comida com azeite (e tal como eu, também com vinagre).

aguardente bagaceira. método ancestral de medição do teor alcoólico
O chicharro estava salgadinho. A refeição foi regada com vinho tinto da Bairrada e no fim houve aguardente velha e aguardente bagaceira feita na máquina de destilar do pai de Fernando Silva, recordando velhos tempos quando eu também trabalhava na máquina de destilar do Manuel Simões da Costa (Manuel Serafim) e deliciava-me com o cheiro doce do bagaço e do produto. Tanto eu como o Fernando Silva tentávamos e conseguíamos fazer um produto final com um teor alcoólico por volta de 21-22 º Cartier (que corresponde a 51-52 % de álcool) quando destilávamos o bagaço nas máquinas de vapor. O teor alcoólico da aguardente bagaceira (ou de outra bebida forte) era fácil por observação do comportamento do “coral” (as bolhas que se formam quando se bate um copo meio de uma bebida alcoólica na palma da outra mão). Bolhas pequenas que se desfazem imediatamente indicam que o valor é menor que 20-21 º Cartier. Poucas bolhas grandes no coral indicam que a aguardente tem um teor alcoólico muito elevado. Bolhas com um diâmetro de 0,5 a cerca de 1,5 mm de diâmetro que perduram durante minutos indicam o teor alcoólico certo. Era, portanto, fácil calcular o teor alcoólico apropriado pela simples observação de bolhas num copo e, por isso, raramente se recorria a um alcoolímetro. O mais interessante é que por toda a Europa se calculava o valor alcoólico da mesma maneia quando não havia aparelhos para medir a densidade.
Eu sei que bebidas, com este teor alcoólico, são proibidas mas (só se permite até 40-43%, mas neste caso, a tradição é mais importante que a lei). Felizmente tenho mais de um almude de bagaceira guardado, porque sei que em poucos anos nada disto existirá na nossa terra.

guardiães/guardiões recordam antepassados
O Ulisses Crespo e o Fernando Silva disseram algumas palavras no fim. O Fernando Silva comoveu os amigos ao lembrar que estas ceias não serviam só para alguns amigos se juntarem para comer, mas sim para recordar os antepassados. Ainda há poucos dias foi lembrado o José Valério no “Notícias de Bustos” e espero que outras pessoas sejam continuamente lembradas para não nos esquecermos, nunca, de onde viemos.

para construir a história «escrevam e anotem!»
Há dias, ao reler um livro chamado “Holocaust” de Martin Gilbert, notei a história do massacre de muitos milhares de Judeus de Riga, na floresta de Rumbuli (onde já estive em homenagem a esses mortos). Nessa altura, o historiador Judeu de Riga, Simon Dubnov, gritou segundos antes de ser morto com um tiro na cabeça: “Escrevam e anotem!”. Dubnov estava a pedir aos possíveis sobreviventes do Holocausto que escrevessem tudo, porque todos os pormenores, por muito insignificantes que fossem, iriam contribuir para que as pessoas no futuro percebessem o que se passou nessa era de extermínio. Eu aconselho o mesmo, «Escrevam e anotem!» porque todos os pormenores, mesmo os mais insignificantes, ficam para a nossa história. E acreditem, … também estão a exterminar continuadamente e cada vez mais depressa os costumes, as tradições e a memória do nosso povo. Penso que em muitos casos, este extermínio é deliberado, propositado e com a finalidade de esquecer a história de uma terra.
E as histórias de Bustos precisam ser preservadas, nem que seja só em palavras.
“Escrevam e anotem !”

Milton Costa


1 comentário:

  1. Anónimo18:34

    Aproveitavam e faziam uma colecta para o OBSC.

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