4 de Outubro, 1910
Mataram o Dr. Bombarda. Espalha-se na cidade que foram os padres que instigaram um tenente a assassiná-lo. É falso, mas há correrias no Rossio e o “Portugal” foi apedrejado. Toda a gente acredita num crime planeado, toda a gente se insurge contra o facto brutal – toda a cidade republicana se transforma num vulcão. No Rossio juntam-se grupos de gente taciturna e desesperada: – Mataram-no! Mataram-no! – ouve-se. À uma hora da noite o Machado Santos à frente de um bando de populares atira-se ao portão de Infantaria 16.
De manhã até às quatro horas ouço o canhão e descargas de fuzilaria. O meu bairro tranquilo: um vizinho sacha as suas couves com indiferença. As lojas fecharam. Ajuntam-se grupos pelas esquinas. De segundo em segundo a artilharia troa. Saio. No Chiado encontro o Alpoim:
– A minha convicção é que os revolucionários perdem, mas a monarquia não se salva. Como resistir ao sangue, aos ódios e aos julgamentos que hão-de ser fatalmente o processo dos últimos reinados?
E com um sorriso irónico conclui:
– Esta tarde o rei sai para a rua em frente duma brigada…
Alguém que esteve de manhã na Rotunda afirma que os revolucionários não passam de quinhentos. Entre eles populares esfarrapados, galegos e mulheres da feira de Agosto. Algumas davam beijos aos soldados, que as sacudiam:
– Deixa-me, isso não é para aqui.
Um homem descalço empunhava uma grande espada dando ordens:
– Estamos à espera da artilharia de Queluz.
Consta que o almirante Cândido dos Reis se suicidou; consta que mataram o comandante da Guarda, o que é falso. Quem assassinaram foi um oficial e o comandante do 16. “Despachámo-los”, segundo a frase cruel dum popular no “País”.
A Marinha está com os revolucionários. Agora, três e meia da tarde, cessam de todo as descargas para recomeçarem com violência às quatro e meia. Às seis horas um cruzador abre o fogo contra o Arsenal e o Terreiro do Paço. Está um céu de labaredas. Outro vaso de guerra desce o rio e coloca-se em frente das Necessidades.
Às dez e meia da noite sei mais notícias: os navios bombardearam o Paço; as tropas fiéis à monarquia estão encurraladas no Rossio. E o Maximiliano de Azevedo conta-me:
– Já da outra vez quem comandava tudo era o Cândido dos Reis, que me disse: “Não dei o sinal a vinte e oito de Janeiro porque não mataram o João Franco. Tinha duas esperas, mas os bandos não se colocaram a distância a que se avistassem, e o ditador escapou. Eu estava à beira-rio pronto a dar o sinal à armada e via as lanchas carregadas de munições – cuja existência o Governo desconhecia – deslizaram no escuro para bordo.
Raul Brandão, Memórias, vol. II
4 de outubro de 2006
MEMÓRIA: IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA
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