4 de setembro de 2005

Postal da Costa Nova: A NOITE DE DINO FONTES

Tenho com a Costa Nova uma relação tão velha quanto eu próprio. É uma parte dos meus afectos, a paisagem de um mês na vida de cada ano. E que mês! Agosto valia por um ano inteiro, marcando um antes e um depois, como se a presença do mar fizesse toda a diferença.
Quando era miúdo e media todas as distâncias tendo por referência o percurso entre a minha casa e a Escola Primária, ir para a Costa Nova era o melhor que podia existir cá neste mundo. A festança começava com uma viagem na velha Hanomag de caixa aberta, a fumarenta camioneta do meu pai. E se lhe chamo velha é com ternura, ela envelheceu diante dos meus olhos, foi perdendo o brilho e a força.
Tinha uma capota azul-turquesa empoleirada sobre umas rodas gigantescas, um banco corrido castanho e um volante maior do que um aro de bicicleta. Quando rumávamos à praia a carroça mecânica (meu pai sempre aproveitava a viagem para lembrar os tempos em que partia num carro puxado por uma junta de bois) ia bem carregada de necessidades, o que em geral significava: garrafas, mantas, batatas, roupas, vinho, loiças, panelas e, se necessário fosse, algum colchão. Tudo dependia do que existia no palheiro (as casas de madeira da Costa Nova) alugado em cada ano.
Com os palheiros listados da Costa Nova, casas vestidas com pijamas às riscas, sempre tive uma relação de doce encantamento. Que mais podia desejar? Tinha um lar de riscas azuis e brancas virado ao nascer do sol. Na frente um manto de águas prateadas com barcos à vela, nas traseiras o grande oceano e o ocaso solar.

De todas as casas por onde fui passando recordo especialmente aquele primeiro andar sem riscas, quase em frente ao busto de Arrais Ançã. Ali, bem no centro de toda a animação, entre a agitação dos cafés, por cima do estendal de uma loja com tolhas e postais ilustrados, paredes-meias com a ria. Ao anoitecer a avenida iluminava-se, transformando-se numa verdadeira passerelle, no local de encontro e desfile dos veraneantes.
Para mim, miúdo e sem autorização para sair à noite, era a sorte grande. Sentava-me na varanda a assistir ao vai e vem do povo, avenida abaixo, avenida acima, ao som de musica variada difundida por auto-falantes presos nos candeeiros. Música que enchia a avenida até às onze horas, hora do encerramento do sonoro, sempre com um solo de trompete, o toque do silêncio.
Para cá, para lá, para cá, para lá, ia marchando a gente, e as mães vigiando o namoro das filhas, e as esplanadas dos cafés repletas, e o cheiro doce da bolacha americana misturado com o odor da maresia.

Estávamos em meados dos anos sessenta. Então o ancoradouro dos barcos (hoje transformado em posto de turismo, bem dentro de terra) cumpria por inteiro a função aquática tendo a seus pés o leito da ria onde ainda labutavam alguns moliceiros, ainda havia gente encinhando as águas. Portugal vivia deprimido entre o temor da guerra colonial, e a repressão de um regime totalitário, beato e machista que promovia a separação dos sexos.
Também por cá uma nova música veio agitar um pouco a moral e os bons costumes oficiais mas, pelo menos na Costa Nova, mais importante do que os Beatles ou qualquer “Love Me Do” foi a revolução do gira-discos portátil, o que veio permitir a realização dos primeiros “ bailes particulares”. Bailaricos nas tardes de domingo, supervisionados pelos olhares atentos de algumas mães, realizados no pátio de uma das várias casas alugadas por amigos e conhecidos (ao tempo a comunidade bustuense que passava as férias na Costa Nova era muito significativa). Verdadeiras ousadias numa época marcada por uma severa e restritiva moral oficial que proibia tanto os beijos em público como a Coca-Cola ou os ajuntamentos com mais de cinco pessoas.

É neste ambiente tacanho e totalitário, cheio de polícias e bufos, todos eles atentos guardiães da moral e dos bons costumes, que o inesperado aparecimento do bustuense Dino Fontes no desfile nocturno da Costa Nova provocou tal escandaleira que a sua memória ainda perdura. Pelo menos para mim que, de olhos esbugalhados, tudo observei daquela varanda, numa casa sem riscas.
Estou a vê-lo; impecavelmente vestido e melhor penteado, com um sorriso ligeiro, indecifrável. Chegou e, sem parar no café ou em qualquer outro lugar, entrou na “procissão” ladeado por duas espampanantes raparigas. As duas loiras (ou seriam morenas?), as duas indubitavelmente bem torneadas, com gestos destemidos e vestes citadinas. Um espanto!
Dino era uma referência, um conquistador com formação e estilo, um malandreco sorridente e misterioso, capaz de fazer vacilar os corações mais empedernidos. Tinha (tem) uns olhos raros e era filho de um verdadeiro mestre na arte do namoro, de um estudioso do feminino, o que mais ajudava a ampliar a enorme fama. Aquela noite, na Costa Nova, ao aparecer com as duas desinibidas raparigas provocou um bruá que deve ter chegado à Barra porque, pouco tempo depois de o trio ter iniciado o passeio, já havia gente descendo à avenida apenas com o propósito de presenciar o evento. Uns apreciando as frescas meninas, outros invejando a sorte do macho e alguns, os castos de sempre, rangendo os dentes, receando pelo fim dos bons costumes e da moral vigente.


Mostrando indiferença no caminhar, mas sabendo-se debaixo de todos os olhares, em especial das escandalizadas mães sentadas ao longo das soleiras, Dino Fontes recriava-se ao longo do percurso, ensaiando alguns números para os espectadores mais atentos.
Caminhava de mãos nos bolsos, lentamente, as raparigas bem perto, ombro a ombro, articulando em simultâneo as belas gambias. Dino nem sempre apreciava a sintonia e quando se fartava do ritmo, ou queria testar a concentração feminina, acelerava o passo provocando o destrambelhar do grupo e a divertida corridinha das surpreendidas ninfas logo tentando acertar o passo.
A certa altura aquilo transformou-se num jogo de inesperadas acelerações e algumas injustificadas inversões de marcha. Era vê-lo a virar costas e elas a continuarem em frente, desprevenidas, até lhe darem pela falta e rodopiarem para nova corridinha até se colocarem de novo ombro a ombro. Por vezes parava para as receber com um ligeiro erguer de braços, logo voltando a enfiar as mãos nos bolsos, retomando a postura altiva e principesca.
Há muitas formas de um jovem mostrar a sua irreverência e o Dino enfrentava com grande compostura e sarcasmo o moralismo de então. Não o fazia por acaso, cumpria um desafio, talvez uma aposta. E sobretudo exercitava um estilo que fez escola; ironizava, como cumpre a qualquer provocador, pacífico, minoritário e divertido.

Belino Costa

PS: A tradição do passeio nocturno mantém-se e foi significativamente reforçada este ano com a inauguração de uma nova e cuidada calçada portuguesa decorada com motivos marítimos e a introdução de mobiliário urbano a condizer, incluindo uma moderna iluminação nocturna, tubos de luz branca.
A calçada Arrais Ançã, segundo a placa oficial, veio dar um novo brilho ao tradicional passeio nocturno, hoje bem mais informal, desorganizado e descontraído do que nas aperaltadas noites dos anos sessenta.

1 comentário:

  1. Anónimo15:53

    ISTO SIM, SÃO REALMENTE NOTICIAS DE BUSTOS.........

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