27 de setembro de 2005

JACINTO DOS LOUROS:BUSTUENSE, REPUBLICANO E LAICO

1963
Janeiro, dia 13, segunda-feira.

Foi hoje a enterrar Jacinto Simões dos Louros, em Ílhavo, pelas cinco horas da tarde. A notícia da sua morte foi recebida ontem, cerca das sete horas, e logo me pus em comunicação com o Sr. Dr. Manuel dos Santos Pato, sobre as disposições a tomar, uma vez que lhe tínhamos feito a promessa que o seu corpo seria sepultado em Bustos.
As impressões do Sr. Dr. Pato eram de que ele ia ser sepultado em Ílhavo na campa da sua mulher. No entanto eu não queria que a minha promessa ficasse em pouco, e fui logo de manhã até Ílhavo (apesar de estar chuvoso) falar com a família.
Chegado, procurei falar com os seus, mas não foi possível apesar de procurados. Soube que estavam na capela do hospital, onde o finado se encontrava e de lá sairia o funeral.
Fui para Aveiro passando de novo em Ílhavo, tendo então falado com os familiares de Jacinto dos Louros, oferecendo-lhes o cumprimento da minha palavra, e a de outros amigos, para que ele, grande amigo de Bustos, fosse aqui sepultado.
Eram, talvez, duas horas, já parte de família se encontrava junto do finado. Depois de dar os pêsames a todos os presentes falei com o Dr. Manuel Guerra, único filho varão do falecido, que me agradeceu a oferta para que seu pai fosse sepultado em Bustos, como era seu e nosso desejo, mas que outros motivos poderosos impediam concretizar esses desejos. As razões e motivos que impediam a transladação do cadáver é não terem ainda mausoléu para nele depositarem o corpo, como ainda a gravidade do momento político que passa.
Regressei a Bustos procurando reunir e levar a Ílhavo alguém que pudesse prestar as devidas homenagens àquele a quem Bustos tanto deve.


PORMENORES BIOGRÁFICOS

Jacinto dos Louros era órfão de mãe ao nascer pois esta faleceu no parto. Dois anos depois seu pai emigrou para o Brasil, deixando-o ao cuidado da sua irmã Rosa que era solteira e a quem foi confiado o amparo e a educação do Jacinto. Seu pai veio a falecer, no Brasil, dois anos mais tarde o que motivou que a tia Rosa fosse o seu único amparo. Esta tia passou a viver com o seu irmão, João Simões dos Louros, casado com Madalena dos Reis, tia do autor desta pequena biografia.
Naqueles recuados tempos em que a literatura e a instrução eram apanágio de poucos Jacinto dos Louros evidenciou-se começando por ser comerciante de ovos. Com esta missão vai até Lisboa, aí se estabelecendo no mesmo comércio. Depois chama para seu empregado e mais tarde sócio seu primo Manuel com quem tinha sido criado. E assim resultou o estabelecimento definitivo de Manuel na capital onde arranjou fortuna e onde ainda reside. Jacinto dos Louros, pelo contrário, acabou por regressar.
Acontece que pelo ano de 1906, com a criação da primeira escola feminina, veio para Bustos uma professora oriunda de Ílhavo. A nova professora não passou despercebida pela sua beleza natural e ainda pela forma inteligente e carinhosa como exercia a sua nobilíssima profissão. Estes predicados atraíram Jacinto dos Louros e em breve se consorciaram.

ENFRENTA O DÉSPOTA

Naquele tempo Bustos estava praticamente subordinado ao Visconde de Bustos, titulo adquirido em 1907, cujas vontades e caprichos, por vezes disparatados, eram sempre aceites como bons. E embora nem todos os aceitassem como certos ou sérios, ninguém se atrevia a enfrentar o “alto senhor” ou discordar das suas atitudes. Apenas um o fez e esse foi Jacinto dos Louros.
Era costume, todos os dias à noite, reunirem-se no estabelecimento do Visconde os homens mais representativos de Bustos e, quase sempre, a política fazia parte da cavaqueira. A monarquia e os seus dois grandes partidos, Progressista e Regenerador, debatiam-se no estertor das suas agonia. Naquele tempo a expressão da palavra era livre e a imprensa fazia largos comentários sobre o momento político.
Jacinto dos Louros nem sempre estava de acordo com o amigo Visconde e este não aceitava qualquer discordância. Às discussões seguiu-se a discordância total e por fim o corte de relações.
Enfrentar a ira do homem, que era um déspota, viria a trazer grandes dissabores como de facto aconteceu. Sindicâncias à sua mulher com o fim de ser irradiada da Escola de Bustos, insultos de toda a ordem, coisa tão em voga naqueles tempos.
A sindicância não produziu os seus efeitos mas parte da sua casa foi incendiada e tudo levou a crer que foi obra da “Camarilha”.
Não era Jacinto dos Louros homem que se intimidasse mas é certo que quase toda a gente o olhava com rancor. Uma vez implantada a Republica começou a ser o chefe local e como tinha o poder nas mãos começou a ser mais respeitado, apesar da maioria do povo o odiar. Pouca gente tinha como amiga.

UM POLÍTICO …

Fez parte da primeira vereação republicana do concelho e como vereador começou a trabalhar em prol de Bustos. Tempos depois os monárquicos começaram a conspirar abertamente contra a República, o que motivou algumas prisões entre elas a do Visconde de Bustos e dos seus lugares tenentes. Prisões que se mantiveram por alguns meses em Aveiro.
A sanha feroz contra o Louros aumentou, responsabilizando-o por tais prisões. Mas eles não estavam inocentes porque o atentado contra a Corte do Pano, chefiada pelo padre Maneta, teve como ajudante o colaborador fiel do Visconde, Matos Ala.

Naqueles tempos, em que Bustos era um ramo da freguesia da Mamarrosa, os nossos interesses eram prejudicados em favor da sede da Freguesia e sempre com o apoio do Sr. Visconde que tinha lá os seus amigos. No entanto, devido à sua coragem, Jacinto dos Louros defendia sempre a sua terra e as demonstrações de paladino dos nossos interesses trouxeram-lhe mais alguns amigos.
A grande aspiração do povo de Bustos era a sua separação da Mamarrosa, com quem não se sentiam bem porque eram muito prejudicados, e porque Bustos tinha todos os valores e requisitos para ser uma nova freguesia. Apoiado agora por um maior número de amigos, na maioria gente nova, Jacinto dos Loures assume tal aspiração lutando e conseguindo a criação da nova freguesia. A sua criação teve lugar no Parlamento em 18 de Fevereiro de 1920 por proposta do deputado de Aveiro António Costa Ferreira, residente em Oliveira do Bairro.
Tal feito, que a Jacinto dos Louros se deve, granjeou-lhe muitas simpatias, com excepção do Sr Visconde e dos seus mais ferrenhos seguidores.

…MUITO GENEROSO

O primeiro aniversário da criação da freguesia foi solenemente festejado com duas bandas de música, muito fogo e as ruas ornamentadas. À tarde, no arraial, discursaram dois grandes oradores, Dr. José Barata e Manoel das Neves. Apesar de ser uma festa muito simpática, mesmo assim, houve gestos pouco harmoniosos por parte da comitiva do Visconde de Bustos, sempre arruaceiros e malcriados.
Pode dizer-se que todo o povo de Bustos viveu intensamente o acontecimento porque a “emancipação” era a nossa maior aspiração.
Jacinto dos Louros obsequiou, em sua casa, todos aqueles que ele julgava paladinos da nossa causa. Todas as despesas inerentes à criação da nova freguesia foram por ele custeadas. Quero aqui lembrar alguns nomes que trabalharam e se esforçaram para que Bustos fosse freguesia:
Manoel Francisco, Manoel Reis Pedreiras, Manoel Rosário, António Carvalho, Manuel da Costa Morgado, Manoel Correia da Silva, Miguel Morgado, Manoel Cipriano, Duarte Nunes Cipriano, Manoel Nunes Pardal, António Vieira, Alfredo Barreiro, Manoel Francisco Domingues e tantos outros que trabalharam com afinco para a nossa inteira emancipação.
Nas primeiras eleições todos foram dar o seu voto ao homem que com o seu esforço e o apoio de alguns tinha criado a freguesia de Bustos.

OBRIGADO A PARTIR

O primeiro passo foi o mais difícil e na verdade o que mais valor tinha, mas faltava ainda a separação eclesiástica. Houve que encetar os primeiros passos para esta nova realização e é então que o autor destas linhas redige um memorando a sua reverendíssima o Sr. Bispo Conde de Coimbra.
A forma expressa, despida de um português de Lei, no entanto encerrava os nossos veementes desejos e as nossas razões para a inteira independência de Bustos. O abaixo-assinado foi subscrito por 95 por cento e a nossa pretensão foi patrocinada pelo Sr. Dr. Manoel dos Santos Pato que a fez prevalecer junto da Diocese, e sua Reverendíssima deu despacho favorável à nossa petição.
Tal facto viria a consumar-se dois anos mais tarde mas Jacinto dos Louros, fiel aos seus princípios, nunca interveio nestes assuntos. Tornou-se o chefe político local sabendo atrair a si os jovens. Mas a vida tem as suas exigências e Jacinto dos Louros, para melhor educar os seus filhos, vai para Ílhavo onde a sua mulher fora colocada. Vende então a casa, sita na rua de Bustos, e deixa Bustos definitivamente.

Fizemos-lhe uma despedida afectuosa acompanhando até aos limites da nossa freguesia o amigo. que com tanto desinteresse serviu a sua terra, que levou no coração.
Seus filhos, em número de cinco, todos se educaram tendo o seu filho varão tirado um curso superior.
Afastado da sua terra, umas vezes em Ílhavo outras no Porto, sempre que encontrava gente de Bustos sentia um grande prazer em conversar procurando saber notícias da sua terra por quem tanto pelejou e sofreu.
Tive ocasião de o visitar no seu leito de sofrimento. Impossibilitado de falar, mas de espírito lúcido, sentia prazer de nos ver mostrando-nos na sua expressão o grande amor a Bustos e à República.
Convém lembrar aqui a manifestação de apreço e gratidão que o povo de Bustos, na comemoração do aniversário da criação da Freguesia lhe tributou no Cine-Bustos, englobando também a figura muito ilustre e de grande benemérito que é o Dr. Manoel dos Santos Pato.
No acto foram descerradas duas placas no átrio do Cinema, lugar que achei impróprio e a razão está à vista, é que pouco depois, por motivo de obras, as lápides foram retiradas.

O FALECIMENTO

Jacinto dos Louros tinha uma prodigiosa memória, conversador a toda a prova, aproveitava sempre que podia, ou quando encontrava alguém que fosse de Bustos para falar de assuntos relacionados com a política e com a sua terra.
Era o mês de Agosto, ia para a praia (Costa Nova) onde tinha sempre gente conhecida para as suas cavaqueiras. E no final do mês de Agosto de 1961 deixou os amigos para ir assistir ao funeral de António Luís Gomes, único sobrevivente do primeiro governo republicano, a quem ele quis prestar a sua homenagem. O sol e a emoção sofrida deram origem a um ataque que o paralisou, impedindo-lhe para sempre o uso da fala. Deste ataque veio a falecer, já com cerca de 85 anos.

O seu funeral, que foi civil, saiu da capela do Hospital de Ílhavo numa carreta dos bombeiros e lá foi a enterrar na sepultura de sua mulher, já falecida. Apesar do mau tempo o cortejo foi regular e de Bustos foi muita gente.
Assim baixou à terra um homem intemerato, defensor da República, amigo da sua terra, a qual nunca esqueceu. Os Republicanos de Bustos ofereceram-lhe um bouquete de flores rubras e eu, pessoalmente, também. Devido à situação política não houve discursos junto à sepultura, com desgosto para mim que tinha pensado dizer algumas palavras em honra do grande amigo de Bustos.

Vitorino Reis Pedreiras

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