António Duarte Sereno (1859-1944) consagrou o seu estatuto social em 16 de Julho de 1908, quando El Rei D. Manuel II (1889-1932) o agraciou com o título de Visconde. Viviam-se tempos de tão acentuada decadência que os títulos eram concedidos a troco de alguns contos de reis. Para uma monarquia falida tudo servia como fonte de receitas.
A crise era tão estrutural quanto moral. Os títulos nobiliárquicos atingiam tão módicos preços que a moda alastrou como qualquer outra epidemia. A ponto de Ramalho Ortigão ter escrito: “Há uma coisa que está sendo tão vulgar com o ter febres; é contrair um título”. (Farpas VI, Clássica Editora, 1991, pag 161.) Também Almeida Garrett se referiu à questão criando um estribilho que fez êxito: “ Foge cão que te fazem barão. Para onde se me fazem visconde?”
O autor de “Viagens da Minha Terra”, talvez pelo prazer da ironia, acabou por provar o seu próprio “veneno.” Também ele virou visconde!
A crise era tão estrutural quanto moral. Os títulos nobiliárquicos atingiam tão módicos preços que a moda alastrou como qualquer outra epidemia. A ponto de Ramalho Ortigão ter escrito: “Há uma coisa que está sendo tão vulgar com o ter febres; é contrair um título”. (Farpas VI, Clássica Editora, 1991, pag 161.) Também Almeida Garrett se referiu à questão criando um estribilho que fez êxito: “ Foge cão que te fazem barão. Para onde se me fazem visconde?”
O autor de “Viagens da Minha Terra”, talvez pelo prazer da ironia, acabou por provar o seu próprio “veneno.” Também ele virou visconde!
Para o espírito monárquico de António Duarte Sereno a compra do título não foi uma questão de preço, antes terá sido uma necessidade de afirmação social. O palacete, construído (1905/6) com tanta preocupação e zelo, não bastava como prova da sua riqueza. O facto de ter sido Presidente da Câmara (1890-92), Administrador do Concelho (1899-1901), figura local do Partido Progressista e amigo de José Luciano do Castro (1) não chegava como afirmação incontestável do seu poder e influência. Também a condição de grande proprietário e capitalista não era bastante para emoldurar a sua notável existência. Aspirava a uma outra categoria. E a influência política, aliada ao dinheiro que lhe chegava via Casino de Espinho, assim como da exportação de vinho do Porto, iriam permitir-lhe transformar uma origem humilde em condição fidalga e nobre.
Corria o trágico ano de 1908. D. Manuel, com apenas 18 anos e pouca preparação para o cargo, via-se Rei de Portugal e dos Algarves na sequência da trágica morte do pai e irmão, assassinados por carbonários no primeiro dia do mês de Fevereiro, em Lisboa.
A cerimónia da Aclamação Real, em Cortes, aconteceu no dia 6 de Maio. Fardado de generalíssimo, envergando um manto de arminho com castelos de ouro, a mão direita segurando o ceptro, D. Manuel II leu o juramento perante os deputados, os pares do reino, e demais ilustres que enchiam por completo as galerias do hemiciclo. E a todos Ele surgia magnífico, eterno, capaz de reconduzir a monarquia a um novo esplendor. Foi gloriosa a cerimónia e por fim, do alto da varanda do Palácio de S. Bento, o alferes-mor, conde de S. Lourenço, empunhando a bandeira, gritou:
“Real! Real! Real! Pelo muito alto e muito poderoso e fidelíssimo Rei de Portugal, D. Manuel Segundo!”.
Assim se cumpriu o secular ritual. O brilho da cerimónia parecia assegurar um longo caminho ao jovem rei. E no entanto, 17 meses e seis governos depois, o “muito alto e poderoso” monarca estava na praia da Ericeira pulando para um barco de pescadores chamado Bom Fim, a última etapa da fuga até ao iate real, Amélia. Navegaria depois em direcção a Gibraltar, deixando o país entregue à revolução republicana.
Em 1908 António Duarte Sereno também não acreditava que a monarquia estivesse em estertor. Bem pelo contrário, renovava a fé no regime e tudo fazia para alcançar o título de Visconde. Era um homem do seu tempo e como muitos outros aspirava a ser membro de pleno direito da aristocracia, deixando de ser questionada a origem humilde, a fortuna meramente mercantil.
Pouco lhe interessava impressionar a aldeia, onde já era “rei e senhor”, mas o mesmo não diria quanto aos salões de Espinho, os palacetes do Porto, Águeda, Anadia, ou os escritórios de Londres. Apesar de toda a vulgarização, a importância de um título continuava a ter tal peso que Ramalho Ortigão disso nos dá conta quando sublinha: ”Para o indivíduo que se deitou simples João Fernandes e que de repente acordou visconde Fernandes ou conde João, a mudança de condição equivale à mudança de país.” (Farpas VI, idem)
SUBIR DE NÍVEL
O almejado título veio, aos 49 anos, coroar uma vida. Foi a consagração, a subida de nível social daquele que gostava de referir e repetir, com óbvio orgulho e uma centelha de vaidade, que apenas com 15 anos começara a ir fazer negócios para Londres. Levava os bolsos cheios de dinheiro mas nunca se deixara roubar.
A régia graça foi concedida em carta de 16 de Julho de 1908, “atendendo às qualidades e circunstâncias de António Duarte Sereno, importante proprietário e capitalista no concelho de Oliveira do Bairro e querendo dar-lhe um testemunho autêntico da minha real benevolência: Hei por bem fazer-lhe mercê do título de visconde de Bustos em sua vida.”
Mas porque a benevolência real tinha os seus custos, ficava o bustuense “obrigado ao pagamento da quantia de um conto e duzentos mil reis de direitos de mercê.” E no dia 18 de Julho de 1908, dois dias depois, esta importância era liquidada na 2ª Secção da inspecção-geral de impostos de Lisboa, “ tendo pago mais, como consta do mesmo recibo, a importância de trezentos e trinta e oito mil seiscentos e vinte e sete reis de impostos adicionais, incluindo o de cinquenta e quatro mil reis para registo de cartas.”
No total o título custou a bela maquia de um conto quinhentos e trinta e oito mil, seiscentos e vinte e sete reis.
Nesse mesmo ano, por Lei de 3 de Setembro, fixou-se uma dotação de um conto de reis diário para D. Manuel II, sendo que as despesas com os palácios da coroa e as destinadas a viagens oficiais do rei, assim como as recepções a chefes de estado estrangeiros, passavam a ser pagas pelo tesouro público. Ou seja, comparando com a dotação real o pagamento feito por António Sereno pouco mais dava do que para um dia na vida de D. Manuel II…
Pouco para o rei, muito para o novo visconde que já podia mandar gravar o brasão no faqueiro de prata, bordá-lo nas almofadas para os sofás do salão. E como não lhe bastava a glória íntima, era fundamental dar a conhecer ao mundo a sua nova condição, contratou o fotógrafo da União Postal Universal. A exemplo do que hoje acontece nas revistas de sociedade, fez-se fotografar e ao seu palacete. Patrocinou uma edição de três bilhetes-postais (que publicaremos amanhã), onde nem se esqueceu de mostrar a criadagem.
A vitória foi total porque, indo além da disposição real que lhe concedia o título “em sua vida”, António Duarte Sereno ficou Visconde de Bustos para todo o sempre. Durante a Monarquia como na República. Em vida como na morte.
O sonho tornou-se realidade, cumpriu-se a ambição do filho de Joaquim Duarte Sereno (1825-1902), natural de Aguim, um humilde vendedor de quinquilharia que em meados do século XIX se refugiou em Bustos, após a dramática fuga (segundo alguns, o rapto) daquela que viria a ser sua esposa, Carolina Inácia de Almeida. Mas essa é história que fica para depois.
Belino Costa
(1) - José Luciano de Castro (1834 - 1914 ). Nasceu em Oliveirinha, Aveiro, em 1834, vindo a afirmar-se como político e jurisconsulto. Foi um dos fundadores do Partido Progressista (1876), partido a que presidiu por largos anos, tornando-se o político mais influente das últimas três décadas da Monarquia. A nível regional, com o seu casamento em Anadia e a ligação ao mundo vinhateiro, introduziu a Bairrada na rota da política portuguesa.
Muito, muito interessante. Finalmente começamos a perceber quem era o velho Visconde.Continuem que o que estão a fazer é um contributo enorme. O meu obrigado.
ResponderEliminarA.M.S
Concordo com o comentário anterior.
ResponderEliminarMuito interessante! E bem escrito.
upa! upa!
ResponderEliminarO espólio que vai aparecendo nos artigos estão no palacete ou pertencem a colecções privadas?
ResponderEliminarBelino Costa ao editar uma prolongada série de trabalhos dedicados a António Duarte Sereno, o sr. Visconde, está a oferecer significativos subsídios para o estudo de Bustos.
ResponderEliminarPara além da qualidade das peças há um minucioso trabalho de busca, nem sempre fácil ou cómodo.
Aos 15 anos, o sr. Visconde partiu para Londres para negociar em vinhos. Uma curiosidade: Nessa época, vários jovens com a mesma idade ou mais novos partiam para Lisboa e passado pouco tempo montavam negócio. Alguns deles chegaram a atingir grande projecção.
...
Pouco se sabe do tempo dispendido pelo Belino e dos sítios que teve de esmiuçar para encontrar o material que sustentam as suas peças. Mas deixemos isso para a ficção do passado.
sérgio micaelo ferreira
....
O ferro forjado deveria ter sido feito em Bustos. Ao tempo já havia bons ferreiros .
A coroa em ferro forjado não parece corresponder ´`a de Visconde.
ResponderEliminarsérgio micaelo ferreira
Caro Senhor:
ResponderEliminarLi com gosto a sua notícia, sobre António Duarte Sereno, de que tenho a informação de familiares que seria irmão de um Leonel Sereno (?) ou João Duarte Sereno, nascido em 1858, de acordo com o GeneAll.net, ambos filhos de Luís Duarte Sereno e casado com Josefa Maria Caixeiro(?) Cerveira…eventualmente meus 4.º avós…se tiver outra informação possível de partilhar, muito agradecia que entrasse em contacto comigo…confirmando ou desfazendo mitos…contudo o que publicou vai de acordo com o que me foi transmitido por familiares…
Cumprimentos
Eduardo Mascarenhas de Lemos
A origem humilde do visconde é história da carochinha. O seu pai, o tal vendedor de quinquilharias, foi comerciante abastado e Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro. Pela avó paterna, entronca nos Cerveiras de Aguim. Pela mãe, entronca em famílias abastadas de São João da Azenha e Sangalhos. O Visconde não quis estudar, e começou a trabalhar muito novo, não por falta de recursos dos pais, mas por falta de vocação. Dois irmãos do visconde estudaram e chegaram ambos a juizes conselheiros.
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