19 de julho de 2007

O ENGº PATO E A CONSTRUÇÃO DA IGREJA DE BUSTOS

(Extractos de um depoimento do Eng.º Neftali da Silva Sucena)
Natural de Águeda, tendo cursado engenharia civil na Universidade do Porto, o Eng.º Neftali da Silva Sucena foi um dos companheiros de estudo, depois de profissão, do Eng.º Santos Pato com quem colaborou em inúmeros projectos, nomeadamente na construção da Igreja de Bustos. É o processo da construção desta importante obra que Neftali Sucena invoca num interessante depoimento de que publicamos extractos. A versão integral pode ser lida aqui.


O Eng. Pato licenciou-se em Engenharia Civil nos meados do mês de Julho de 1952.
Já casado com a D. Celina passaram a residir no «palacete» construído pelo sogro, em Mourisca do Vouga.
Por razões de vária ordem decidiu encetar a sua carreira profissional na área da residência e para tanto foi alugado o 1º andar de um prédio situado na Praça Conselheiro Albano de Melo da então vila de Águeda, onde se instalou um rudimentar Gabinete Técnico destinado à elaboração de projecto de obras de construção civil, particulares e públicas.
A actividade iniciou-se em meados do ano de 1953 com a elaboração de um projecto de um edifício destinado a comércio e habitação, encomendado pelo Sr. Vitorino Reis Pedreiras, e que veio a ser construído em Bustos, de frente da Capela (Igreja) então existente. (…)
A primeira obra pública construída foi o edifício para a Administração Florestal de Águeda, iniciada em 1958 e concluída em 1960.
E a actividade seguia, continuadamente.

Ora acontece que no dia 27 de Outubro de 1954, o Padre António Henriques Vidal foi nomeado pároco da freguesia de Bustos com a pesada incumbência de reanimar pastoralmente a adormecida paróquia.
Passados uns tempos, eis que surge no Gabinete Técnico a pessoa do Padre Vidal, sorridente, confiante, voluntarioso e destemido, solicitando ao Eng. Pato, natural e morador em Bustos durante muitos anos, preciosas informações acerca da gente daquela freguesia, com vista a estabelecer uma estratégia adequada a um bom entendimento.
O Eng. Pato não recusou os seus bons ofícios e expôs longamente as virtudes e os naturais defeitos dos seus conterrâneos (…)
E o que foi certo, foi as visitas continuarem com o mesmo espírito, ora para obter novos conselhos, ora para relembrar tempos passados durante os quais o Gabinete Técnico já tinha prestado valiosa colaboração nas manifestações caritativas realizadas na paróquia de Águeda e também orientadas pelo Padre Vidal, durante os anos de 1951 a 1954, na qualidade de coadjutor desta freguesia.
Vem daqui o natural conhecimento donde nasceu uma sã amizade entre os personagens que mais tarde viriam a prestar uma útil colaboração na magna e quase impossível missão cometida ao destemido Padre Vidal. Gente jovem, simples, bem intencionada, sem grandes ambições, sensível à solidariedade e capaz de a praticar. As idades oscilavam entre os 26 e os 32 anos, sendo eu, o mais novo, e o Arquitecto Carneiro, o mais velho. (…)

O Eng. Pato era um oposicionista militante. Cultivara este ideal desde os bancos da Universidade e manteve-o fulgurantemente luminoso por toda a vida.
Aproveitou todas as oportunidades para propagar as suas convicções. Procurou por todos os meios possíveis lutar contra a ditadura do Estado Novo. Participou e destemidamente na organização de conferências, comícios, palestras, congressos e campanhas eleitorais, em colaboração com verdadeiros amigos, solidários e fiéis. O evento mais relevante e de maiores consequências, consistiu na realização do 1º CONGRESSO REPUBLICANO, do qual foi secretário-geral o excelente cidadão, o ilustre escritor e distinto médico, Dr. Mário Sacramento, que teve lugar na cidade de Aveiro, no ano de 1957. (…)
Desde o momento em que o Padre Vidal começou a frequentar o Gabinete Técnico do Eng. Pato, gerou-se a ideia consensual de que, entre outras, a missão máxima transmitida pelas superiores hierárquicos e a cumprir a todo o custo e a qualquer preço pelo novo pároco da freguesia de Bustos, seria a realização de amplificação da capela (Igreja) de S- Lourenço.
Mas o Padre Vidal, durante anos não revelou o objectivo de tão ambiciosa missão! (…)
Veio ao conhecimento público que a Comissão Fabriqueira havia comprado aos herdeiros do Visconde, um terreno anexo à capela de S. Lourenço.
Estavam lançados os dados!

Em breve se fez anunciar o Padre Vidal através do ruído do motor do seu “dois cavalos”.
Surge prazenteiro, ufano, mais risonho do que nunca, ocupando de imediato a sua habitual posição e reclamando atenção de todos, pois pretendia expor um assunto da maior importância.
Silenciados os presentes, o Padre Vidal, com ar triunfante, anunciou que estavam reunidas as condições para se iniciarem todas as diligências e estudos indispensáveis para a construção da obra de ampliação da capela de S. Lourenço, transformando-a na Igreja Matriz da Freguesia de Bustos.
Para tanto vinha apresentar duas propostas: a primeira, para que o Sr. Arquitecto Carneiro se encarregasse da elaboração do projecto da obra; a segunda, para que o Eng. Pato tomasse a seu cargo a empreitada da obra em causa. (…)
Definido, finalmente, e de maneira definitiva e irrevogável, o terreno adquirido para a construção da nova Igreja, a sua localização, forma e dimensões, o Arquitecto Carneiro empenhou-se, verdadeiramente, a elaborar possíveis esquemas para o futuro templo, muitas vezes com prejuízo das suas actividades profissionais.
E quando tal acontecia, o Padre Vidal aparece a anunciar uma iniciativa que viria a produzir muito apreciáveis resultados e a possibilitar a ultrapassagem dos obstáculos que ainda subsistiam: - A viagem a Singeverga com o objectivo de sermos bem esclarecidos sobre as correntes de modernidade que enchiam de ar fresco certos centros religiosos onde estudos e reflexões aprofundados por mestres abades, preparavam os fundamentos para a grande viragem por tantos almejada.
Então, uma bela manhã de fim de Primavera, lá partimos no incansável “dois cavalos”, com destino ao convento beneditino de Singeverga, situado a pouca distância de Santo Tirso. (…)
Só a partir daquele momento se tomou verdadeiramente consciência de uma grande aspiração, de uma grande ideia, ainda indecisa, ainda indefinida, nascidas da interiorização da necessidade de a objectivar, de a materializar.
E desde então a ideia do projecto a imaginar, não saiu mais da cabeça do Arquitecto Carneiro.
Uma imagem de retórica que o abade utilizou passou a ser a estrela orientadora do seu pensamento, o símbolo que ele estava, daqui para o futuro, empenhadíssimo em materializar! Disse e repetiu o surpreendente abade: a igreja, o edifício … são pedras mortas; os homens é que são as verdadeiras pedras vivas; a sua comunicação, comunhão e acção é que constituem a Igreja. O óptimo seria que as igrejas se reduzissem a tendas. A partir daqui o símbolo que o Arquitecto Carneiro procurou metamorfosear foi – tenda com muita luz natural! E o Eng. Pato, vislumbrando o surgimento de um projecto ao nível de tão grande ambição, tornou-se atraído pelo elan vigente e interiormente determinado a assumir as responsabilidades da construção da obra a criar.(…)
Ao fim de alguns meses, foi encantador e reconfortante contemplar, na pureza da alvura do gesso, a miniatura da futura Igreja, toda a beleza do conjunto constituído pelas sucessivas “tendas” que lá surgiram e davam prova concludente da transformação do símbolo em arremedo da realidade. Esta maqueta constituiu motivo de um imenso júbilo para o Arq. Carneiro e ainda mais para o Padre Vidal que a partir de então podia exibir para os seus paroquianos, uma visão realista e antecipada da futura Igreja.



Entretanto, a batata quente passara para o Eng. Pato. Começou então um grande quebra-cabeças para ele, aliás como oportunamente previra. Estavam a surgir as anunciadas canseiras e preocupações.
A questão que se punha era como encontrar o método que permitisse calcular a estabilidade e segurança de tais estruturas previstas no projecto por forma a conseguir-se o seu dimensionamento.
E em seguida perguntava-se qual o processo a adoptar para a sua construção.
Perante tal embaraço, eis que surge uma informação inesperada que acabava por confirmar o velho princípio, já em vigor no tempo dos romanos, de que “a sorte beneficia os audazes”. Por virtude de contactos ligados à actividade de empresário de cerâmica, o Eng. Pato tem conhecimento de existir uma grande unidade do ramo no concelho de Torres Novas.
Sem delongas, eis o Padre Vidal e o Eng. Pato, empreendendo mais uma viagem à descoberta de tal empresa. E encontraram-na. Com grande espanto viram construídas enormes abóbadas, de grande vão e de grande altura, com betão simples tendo incorporados elementos cerâmicos por forma a constituírem lajes delgadas e aligeiradas. Os elementos cerâmicos eram construídos pela empresa que as utilizou nas suas abóbadas e agora fabricava para o mercado. Obtiveram o preço do material e o custo aproximado por metro quadrado, em planta, da construção das abóbadas. Foi uma dádiva de “mão beijada”. Mas conseguiram mais uma informação preciosa: a direcção de uma casa comercial de Lisboa que alugava tubos de aço adequados à construção de andaimes e de cimbres.(…)
Concluída a pesquisa informativa e mesmo na ausência da sua apreciação crítica, o Eng. Pato, durante a viagem de regresso, decidiu optar, sem mais hesitações, pela construção de abóbadas semelhantes às que acabara de observar.
Para tanto, impunha-se, previamente, o estudo dos respectivos perfis. Foi o período de maior esforço intelectual desenvolvido pelo Eng. Pato em todo este processo. Agarrou-se ao estirador durante dias consecutivos, relendo sebentas e tratados em busca de uma solução para o problema. Julgo que foi um tempo de ocupação tão absorvente que até pôs à margem a actividade política.
E como “quem porfia sempre alcança”, também chegou para o Eng. Pato aquele feliz momento de dar uma palmada na testa e dizer – “achei”. (…)
Foi então que o Eng. Pato mais uma vez evidenciou a sua capacidade de líder. Tendo confiança no trabalho que acabara de realizar e estando certo das suas convicções relativas à possibilidade de, a partir de agora, e somente de agora, de se iniciar com segurança, a construção da nova Igreja, deu um murro no estirador e ao mesmo tempo um grande berro, exclamando: “Não vai haver alteração nenhuma! Eu com base no desenho a lápis traçado neste papel, vou construir a Igreja”! (…)

Mas eis que toda a organização vem a sofrer um rude e inesperado golpe na madrugada do dia 1º de Dezembro de 1962 quando a PIDE bate à porta da residência do Eng. Pato e o leva sob a prisão, primeiro para Coimbra e depois para Caxias de onde só foi libertado em 8 de Fevereiro de 1963.
Terão que parar os trabalhos de construção da nova Igreja? Era a pergunta que a todos atormentava.
Realizou-se uma reunião da equipa responsável e em breve foi deliberado dar continuidade aos trabalhos em curso. (…)
Após o festejado regresso do Eng. Pato, os trabalhos prosseguiram sem mais percalços até à conclusão da obra. (…)
E o que é curioso é o facto de nunca ter havido entre o dono da obra e o construtor nenhum contrato escrito! Desde a altura em que o Eng. Pato abandonou a posição racional e se deixou envolver pelas razões do coração, tudo ficou acordado em poucos instantes, tendo por fundamentos a amizade, a confiança e o sentido comprometedor das palavras. (…)

Acabada a obra, fecharam-se as contas. Então, como hoje, nunca chegou ao meu conhecimento, o facto de o Arq. Carneiro ter recebido qualquer importância monetária para pagamento dos honorários que lhe eram justamente devidos. Eu acredito inteiramente que ele acabou por se contentar com a inefável alegria e a grande felicidade de ter conseguido objectivar o belo.
De certeza, sei que o Eng. Pato nada cobrou pelos prolongados aconselhamentos, assessorias e diligências prestadas durante meia dúzia de anos, bem como pelos aturados cálculos por ele elaborados. (…)
Do meu ponto de vista o Eng. Pato foi o herói maior desta aventura, considerada quase inverosímil. E não só nesta, mas em muitas outras que, nestas circunstâncias não importa reportar.





1 comentário:

  1. O facto do nosso Forum de sábado ser dedicado à memória do grande amigo Eng.º Néo Pato vem marcando muito o Serginho.
    Cheguei a pensar que lhe estava a faltar o fôlego e a alma para escrever e publicar, a ponto de nada sair da pena dele.
    Benvindo Sérgio/Altino!
    Que raio, alguma coisa aprendemos na guerra das áfricas: tudo, menos morrer de morte morrida!
    E viva a luta, que essa não morre nunca, nem de morte matada!
    *
    Bom trabalho, a por no trilho da memória o bustuense de gema que foi o Néo Pato.

    ResponderEliminar