14 de novembro de 2005

MEU PAI E A 1ª GRANDE GUERRA (Arsénio Mota)



O Sérgio, ao assinalar aqui o aniversário do Armistício (ver dia 11), citou os nomes dos bustuenses que participaram na Primeira Grande Guerra em África e depois em França. Lá apareceu o nome do meu pai, Manuel Simões Mota (o Mota «Guerrilhas», alcunha herdada do meu avô paterno, com raízes na Azurveira) e isso despertou-me para recordações da infância.
Na verdade, ainda brinquei com algum do espólio militar que meu pai guardava no sótão, onde eu ia descobrir, cobertos de poeira e teias de aranha, objectos curiosos como o capacete metálico (um simples prato com correia e fivela para segurar nos queixos), uma parte qualquer de máscara antigás, tecido espesso com visores salientes como olhos de boi para tapar a cara, talvez uma baioneta e uma cartucheira (a memória vacila nestes dois pormenores) e… uma lata oblonga, fechada mas pesada, a cobrir-se de ferrugem. Um dia pusemos-lhe diante dos olhos, à mesa, aquela lata intrigante. A sorrir com a expressão de quem reencontra algo familiar, o meu pai anunciou-nos que era carne de conserva, de cavalo, ração de combate! Muitas vezes eles, combatentes por terras de França, comeram daquilo sentados no peito de um boche morto…
E estará ainda boa? Garantiu que sim, sem dúvida, e fez a prova abrindo a lata e comendo a carne logo ali. Estávamos entre 1935 e 1937, portanto uns vinte anos após o Armistício. Meu pai regressara da guerra, casara, enviuvara sem filhos e tornara a casar e até tivera tempo de se rodear de quatro rebentos, o último dos quais se espantava vendo um comestível aguentar tanto tempo sem apodrecer… E era carne de cavalo!
A memória enreda-se, entretanto, noutras memórias.
Avassalando o mundo entre 1914-1918, a Primeira Grande Guerra marcou uma viragem na história. Foi a última, lembre-se, de combate em trincheiras (e também a «última» pela garantia dada pelos políticos: a seguir, ó maravilha, o mundo iria ficar em paz!)… Apareciam os primeiros aviões, os primeiros tanques, mas os alemães já recorriam aos gases. Cheguei a conhecer em Bustos um homem que fora gaseado, sobrevivera mas com deficiência (psicomotora, parece). De qualquer modo, o mundo em geral não tornou mais a ser o mesmo.
Para «humanizar a guerra» - objectivo aliás impossível! – foi constituída a Sociedade das Nações (depois substituída e reformada como Nações Unidas). As potências vencedoras impuseram outras decisões políticas não menos determinantes, sobretudo no Médio Oriente, onde nunca mais deixaram de se fazer sentir com gravíssimos e crescentes resultados. Neste quadro surge a figura do famoso Lawrence da Arábia, o inglês que mobilizou os árabes e todos, Lawrence incluído, acabaram traídos… E faz-se lembrar o apagamento de países como a Arménia, o que empurrou para o exílio em Paris o milionário Calouste Gulbenkian, mais tarde cativado por Lisboa…
Era, afinal, a expansão mundial do automóvel e a concomitante procura do petróleo que começava a caracterizar o século XX, o século do «ouro negro», motivo contínuo de guerras e poluições várias…

Arsénio Mota

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