24 de setembro de 2006

VINDIMAS II: A PINGA




Óscar Aires dos Santos é um competente advogado e um cidadão com uma larga folha de serviços no capítulo da participação cívica e política. Questões que não interessam a esta crónica porque o advogado, o activista político, o dirigente associativo são apenas facetas de alguém que é apenas e tão só, um agricultor. Terra à terra, em comunhão com a natureza e os animais, capaz de andar às rolas nas noites mais frias.
Há no Óscar uma dimensão rural que o impele a conduzir o tractor, a andar pelos pinhais a cortar o mato, que o leva a tratar com desvelo cada cepa da sua vinha no Portinho. E por desvelo, paixão profunda, arrebatamento agrícola esparrou, mais do que seria necessário, as cepas herdadas do pai, Manuel Joaquim “Ferrador”.
Acontece que as videiras não suportam excessos românticos e as uvas são frágeis de tão femininas. Sim, há coisas tão importantes quanto uma boa poda. Mas quem sou eu para ensinar um professor, aquele que recusa a ráfia atando sempre as vinhas com verga original.

Adiante.

A esparradela apaixonada, excessiva, teve uma consequência trágica já que a produção vinícola revelou ser a mais baixa de todo o sempre. A coisa ficou-se pelos vinte seis baldes, quase nada.

Para mim, que ansiava retemperar as narinas com o cheiro do mosto, foi um duro golpe deparar com tão minguada realidade. Uma razia. Espreitei os dois palmos de uvas no fundo do lagar e percebi que estava perante um complexo desafio.

Foi um momento difícil, confesso-o. Sentindo quão dolorosa era a situação fiquei imóvel, atónito. Depois, intimidado por dois barris que de boca aberta me olhavam severamente, virei costas, fugi para a porta da adega. De camisa aberta, qual druida na fabricação da poção mágica, irremediavelmente optimista, o Óscar sentenciou sem deixar margem para dúvidas:
- É pouco mas de qualidade. O branco tem doze graus, vai dar uma boa pinga.
Pois, também o Asterix acreditava que o céu lhe podia cair em cima da cabeça, cogitei. É que sempre ouvi dizer que não basta ter uvas para se fazer um bom vinho. Sendo que também me disseram que até de uvas se faz tintol.
Vendo o olhar brilhante, a eloquência do bigode, o gesto convicto do meu anfitrião abraçando toda a adega logo concordei:”Vai dar uma boa pinga.”

Nesse dia ao chegar a casa, só por mera precaução, acendi uma velinha ao S. Martinho…

Belino Costa

5 comentários:

  1. Anónimo11:28

    OS leitores ficam à espera que o Dr Agricultor nos convide para as provas do Dia de S. Martinho....É só para tirar as coisas a limpo...
    Podemos levar as castanhas...

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  2. Anónimo13:18

    Apoio a proposta anterior. É preciso tirar a prova dos nove e saber se a pinga é boa. António

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  3. Anónimo13:44

    Se a pinga for tão boa como a prosa tanbém quero provar.

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  4. Quando era rapaz novo, eu, o Jó, Cazé, Beto, James, Carlos, Feliciano, o meu irmão e tantos outros (entre os quais o Jaime da Rita, então um infalível "colega", entretanto reformado por razões de saúde...) fazíamos questão nas provas, fosse na adega do pai Manuel Joaquim, fosse nas de outros produtores de vinho. Chegávamos a fazer umas excursões à Barreira, à adega do Ti Barroco e a outros locais de culto.
    Sim, que aquilo era uma religião e não havia bares ou discotecas.
    O vinho, as vindimas, a queima do bagaço e a demais riqueza de ritos e tarefas ligadas a Baco, eram o pão nosso de cada dia. Estava-nos no sangue, não fosse o Vinho da côr d'Ele. Era, talvez, o único trabalho campestre que vivíamos em verdadeira alegria, que desejámos nunca acabasse.
    Mais do que tudo, a vinha e o vinho eram "a salvação da lavoura".
    Daqui a meia dúzia de anos restar-nos-á uma amarga recordação. As gerações que despontam acabarão por pensar que o vinho nasce nas garrafas, do mesmo modo que hoje muitos desconhecem que o leite é produzido pelas vaquinhas...
    Quanto tempo mais resistirei, qual irredutível gaulês?

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  5. Como Bustuense da nova geração, cabe-me dizer que quem como eu gostar da vinicultura e pegar nas vinhas que herde, só vos dará alegrias, isto porque ao fazê-lo o fará por gosto, com gosto; esperam-se "pingas" de grande qualidade...

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