6 de janeiro de 2006

DIA DE REIS

Hoje é Dia de Reis, o dia mais marcante na minha memória da Aldeia onde nasci.
Sim, o Cortejo dos Reis dos meus quase 6 anitos foi uma celebração verdadeiramente inesquecível e inenarrável porque nos trouxe, olhos adentro, a 1ª verdadeira pantalha dum povo de pedintes esfomeados e roído pela dureza e amargura dos trabalhos do campo.
Poderia lá o Povo daquela que era então a Aldeia mais Linda do Mundo inteiro e arredores imaginar que, exactamente no dia 4 de Setembro do mesmo ano de 1954, o ditador lá consentiria que o seu delfim avançasse com a 1ª das muitas experiências da que viria a ser, muitos anos depois, a caixinha mágica das nossas desilusões!!

Oh Cortejo dos Reis que passou pelo largo da sede da velha Junta, ali onde a feira dos 9 e 22 começava e o mundo se acabava!
Oh Cortejo, dos Reis que nem sonhavam que o camartelo do progresso os abateria um dia na emboscada de Alcácer Quibir!

- Mas deixem-me que eu cante
de pé no meio do país amado.
- Deixem-me que
Eu cantarei os homens assentados
Nas cadeiras de chuva sobre a dor

O Cortejo daqueles Reis foi um gozo palpitante e encantador para os bandos de miudagem maioritariamente descalça e onde éramos todos ora “polícias” ora “ladrões”!
Eu recordo-vos, oh companheiros desses bandos:

O Zé Bento, que era meu vizinho e um dia haveria de regressar derramado de Moçambique, juntou-se do alto dos seus 18 anitos de mecânico abispado ao amigo e vizinho Zé dos Moras, para juntos iniciarem a construção do único avião que se passeou imponente pelas ruas da minha Aldeia ainda não era meio Dia de Reis de 1954.

Foi na oficina de mecânica do aveirense Armando Maia, junto à serração do Tribuna e ali à beirinha da estrada que levava para Palhaça ou Cantanhede, que os dois conceberam aquela maravilha nunca vista: durou-lhes 2 meses a árdua mas imaginativa tarefa, que a dureza da oficina ou a dos grandes e muitos campos do Ti Zé Mora só lhes deixava livres umas horitas dos seus sonos.

Enquanto soldavam e pregavam a estrutura do avião e engendravam os seus mecanismos, as irmãs e amigas costurandeiras iam cosendo os 36 metros do pano-cru que haveria de cobrir o maravilhoso avião. Tinha 4 metros de envergadura, duas rodas à frente e uma atrás, aquelas da carreta do motor de rega do meu primo Adélio e esta ofertada pelo pai do engravatado Jaimito, que o carrinho de brincar chegado há pouco da Califórnia já o tínhamos desmontado todo para desespero do pai Rosendo…
O motor, esse era o da rega, um “Koworn Bernard” da minha Ti Rosa Figueireda, se calhar levada ao engano pelo calmo filho a quem muito mais tarde a morte levaria no El Dorado.

Mas ouçamos o Zé Bento, que a memória vivida nas Africas é das que se agarram à pele macilenta das constantes doses do quinino: o avião era movido a motor de rega com tracção por correia plana, ligada a uma “poli”, que por sua vez movia o veio da hélice dupla. Na sua rotação mecânica, eram as duas hélices que puxavam o avião pela estrada.

Vêm como aquela maravilha era um avião de verdade, a voar rente ao chão de macadame da que veio a ser Rua Jacinto dos Louros?
E nós, os pequenos Príncipes do último voo do Saint-Exupéry, a desejar que ele nos levasse aos céus dos nossos baptismos de voo…
A mim custou-me cara a espera, que ainda era cedo para ser sugado pelos ventos da guerra nas várias Áfricas...

Ah, até as duas pás da hélice eram em tamanho natural; o focinho – esse - imitava na perfeição os aviões dos grandes pioneiros, do Lindberg aos nossos Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que no caso daquele dia mágico eram nada mais nada menos que os dois Zés amigos do peito, cada um com o seu passa-montanha e óculos, naquela cor castanha usada pelo piloto-aviador da Gafanha da Nazaré e que lhos emprestara depois da madruguenta e fria viagem dos dois na Java do Manuel dos Moras.

Que gozo e quanta alegria!
Oh maravilha das maravilhas, eu que passei a procurar-te quando já dormias na grande garagem do Ti Zé Mora, ali ao pezinho do largo da Póvoa e onde só por magia entravas mesmo à justa!
Mesmo hoje, quando olho para aquele modernaço Largo do Rossio da Póvoa, ainda sonho com o avião de lona e coberto de pó que os irmãos Manuel, Zé e Adélio foram cuidando até que se perdeu esfarrapado na memória dos tempos.
Ainda me vejo subir o escadote, entrar na carlinga e, agarrado ao volante dos meus 6 e mais anitos, a fazer VRUUUM! VRUUUM! VRUUUM!
*
O meu pai foi-se embora faz hoje um ano.
Morreu neste dia para que eu mantivesse SEMPRE a memória do
DIA DOS REIS
oscardebustos

3 comentários:

  1. Anónimo18:18

    O Oscar acordou-me as memórias, obrigado por isso! Foi assim: em 1954 eu já tinha 24 aninhos e mandava notícias da terrinha para diversos jornais. Aconteceu então que no dia de Reis evocado pelo Oscar Santos, o tal avião causou realmente uma sensação enorme na assistência! O cortejo parou diante do café do Vitorino (agora do Quim) e o pasmo alastrou em roda. Espanto popular genuíno! E o noticiarista, já então respeitador dos factos, referiu o caso nas notícias. Lembro-me de escrever então para a «República», a «Gazeta de Cantanhede» e a «Independência d'Agueda». Bom, cerca de doze meses mais tarde, já em Caracas, vi uma notícia distribuída pela Agência Lusitânia, de Lisboa, a informar que tinha «aparecido um OVNI em Bustos» e que causara sensação no povo local! Baseada, portanto, na minha notícia, que assim deturpava com óbvia malícia! Recentemente, falei neste episódio curioso ao amigo Joaquim Fernandes, então a preparar tese de doutoramento (sobre OVNIS ou fenómenos tais!) e já nem consegui lembrar o ano, que agora o Oscar diz ter sido o de 1954. Fez-se-me luz na cachimónia. Obrigado de novo, ó amigão, e veja-se por aqui como era a desinformação no antigamente ditatorial! arseniomota@tvtel.pt

    ResponderEliminar
  2. Anónimo22:42

    1? o Comentário do então correspondente Arsénio Mota (AM) levantou-me a questão. Os dispersos de AM antes de voar para o Porto deveriam ser recolhidos. Porquê? Porque são olhares sobre Bustos. E isso basta.A bem do conhecimento.......................
    ...................................
    2? O episódio do “Avião do Rossio da Póvoa” já estava a escapulir-se nas areias movediças do esquecimento. O OSKR, qual caçador/pescador no caldo do imaginário de Bustos, tem trazido à luz algumas pérolas dos povos de Bustos. Destaco o tesouro de António Duarte Sereno e futuro visconde (por obra e peso do seu oiro), enterrado “debaixo da escadaria de acesso ao salão maior (hoje biblioteca fixa da Gulbenkian)”, in Óscar Santos, ‘O Tesouro do Palacete’ Bustos – do passado e do presente V bustos.blogs.sapo.pt, Junho. 07, 2004
    Em horas de serão passadas na lareira no tempo das falocas, esvoaçavam estórias várias e hoje «esquecidas», por exemplo: mouros escondidos numa nascente que apareciam com o reflexo da lua em noite de silêncio ou o diabo que assaltava no caminho da igreja (?) ou o homem que dormia no cemitério e que foi morto, pelo coveiro …ou [a do Vale Maior, já fixada por Arsénio de Bustos Mota, lá para os lados de Albergaria, e, por certo haverá mais, …].
    Com a massificação da rádio e da TV, perdeu-se o grosso das lendas que circulavam pelos povoados de Bustos, Mamarrosa e da nossa antiga Sosa. Se uma Clara Guitas, uma Regina Alves, um Óscar (Guevara) dos Santos, ou um(a) … conseguirem trazer uma lenda ao impresso terão ajudado a encontrar mais outra fundura da raiz da nosso imaginário.
    ………………………………………………
    Natal (dos católicos); Noite de S. Silvestre; Dia de Reis e o Santo Amaro (de Malhapão) são estádios do mesmo momento dionísico. Assinalam magia do despontar outra vida, … em festa. Estes momentos profanos, religiosos por adopção, passeados pelo termo de Bustos merecem ser pendurados à varanda do blogue.
    sergio.ferreira.3@netvisao.pt

    ResponderEliminar
  3. O James, o Jimmy engravatadinho da mamã daqueles anos 50, trouxe-me mesmo agora fotos fabulosas dos Reis daquele tempo.
    O rapaz, talvez por ter passado pelo Vietnam, nunca esqueceu Bustos e já cá dorme há uns anitos, na casinha do pai Rosendo.
    Quando vai aos states ver a filha e os 2 netos sofre que nem uma Madalena.
    ...
    Se soubessem o que ele sofreu quando um dia, vindo para o funeral do pai, lhe trespassei um sonho de piquena!
    Isto de Bustos dói a sério!
    ...
    Mas faltam mais fotos e outras recolhas, sobretudo do internacionalmente famoso

    Avião
    que troava
    e voava
    sem levantar do chão.

    ResponderEliminar