António
Francisco dos Reis
“Terra
adoptada: relato de um imigrante” reproduz
o caderno de “lembranças” escrito
por António Francisco dos Reis, que chegou ao Rio de Janeiro em 11 de
dezembro de 1874,. Tinha 15 anos, haveria de cumprir os 16 em 20 de janeiro do
ano seguinte, e não sabia ler nem
escrever.
Depois
de permanecer no estado carioca por doze anos acabou por se instalar em Ouro
Preto, capital do estado de Minas Gerais,
onde já estava o irmão João. Ali viveu durante 52 anos, tendo falecido
em 1939.
Tal
como refere Maria Francelina Drummond no texto introdutório, A.F.R não foi um
“torna viagem” ou seja, não regressou definitivamente a Portugal. Mas não se pense que retirou Bustos e os
familiares que por cá ficaram dos seus pensamentos.
A morte
do pai, Manuel Francisco Rei, em novembro de 1889, terá sido determinante para
que no ano seguinte tenha empreendido a viagem até Bustos. Chegou à “casa de
mamãe” às oito horas do dia 9 de Setembro de 1890, como precisa no seu manuscrito. Este regresso inspirou-lhe um desabafo poético:
“Já é grande e doloroso
Com muitas penas chorando.
Todo cheio e alegria,
É que me fui
consolando.
Ó que tempos saudosos,
Que está passando.”
Ainda solteiro, A.F.R aproveitou a viagem para passear com a
mãe, Josefa de Oliveira, e a irmã, Maria Rosa, visitando as cidades do Porto e
Aveiro. Mas a principal missão foi realizada no cemitério de Bustos,”para
memória dos meus”, como fez questão de referir:
“Em 18
de Novembro de 1890 construí no cemitério de Bustos em cima da sepultura de meu
querido Pai uma campa e um Cruzeiro de Pedra Mármore e um gradilho de ferro,
com as letras no dito cruzeiro: Recordações de sua esposa e filhos aqui jazem
os restos mortais do finado Manuel Francisco Rei, falecido a 18 de Novembro de
1889, com 79 anos de idade.”
O
jazigo(atualmente) no cemitério de Bustos
Em
abril de 1891 António regressou ao Brasil. Haveria de se casar no ano seguinte
(31 de dezembro de 1892) com Ambrosina Fiúsa dos Reis, filha de um português,
que lhe deu cinco filhos: Benedito (1896), Eurico (1898), António (1901),
Silvia (1903) e Marieta (1905).
Entretanto,
em Bustos, tinham chegado ao fim os dias da mãe, Josefa de Oliveira, que
faleceu em 15 de junho de 1901.
Tinham
passado 17 anos sobre a primeira viagem a Bustos, quando António decide voltar
às terras de origem, desta vez acompanhado por mulher e filhos. De notar que, em 1906, tinha
comprado “todos os bens que o meu irmão João tinha em Portugal.”
António
Francisco dos Reis e família em foto de 1909
No dia
18 de julho de 1907, num momento muito conturbado da política nacional, que ficou
conhecido como “ditadura de Joâo Franco”,
António e família chegam a Bustos. O manuscrito não revela se vinha com
vontade de se instalar entre nós, ainda que tivesse criado as condições para
tal eventualidade. Certo é que aqui nasceu a filha Maria Fiúza dos Reis, em 28
de setembro de 1908. Nesse mesmo ano António
vendeu o património que detinha em Bustos, preparando assim a sua mudança para
Vila de Barreiros, no concelho do Porto, o que viria a acontecer no ano
seguinte.
O
manuscrito não o revela, mas talvez a instabilidade política e o prenúncio da revolução tenham levado A.F.R a regressar
definitivamente ao Brasil. O que aconteceu depois de ter ajudado a irmã na
construção da casa, e de mandar reconstruir o jazigo familiar, que ainda hoje
conta com a inscrição que então mandou cinzelar: “Aqui jaz Manoel Francisco Rei
e sua esposa Josepha de Oliveira (…)” Em baixo, à esquerda, acrescentou como
que em nota de rodapé:” “Mandou construir este mazuleu seu filho António
Francisco dos Reis - Negociante no Brasil.”
Não pude
deixar de ir ao cemitério de Bustos em busca do testemunho feito pedra.
Não o
encontrei na primeira passagem e quando já temia pelo desaire vi-me diante de
uma inscrição que já bem conhecia: "Aqui jaz Manoel Francisco Rei e sua
esposa Josepha de Oliveira..."
Clélia de Oliveira Loureiro cuidando dos arranjos florais
Ao ver-me
especado a olhar a pedra tumular, uma mulher, aninhada entre duas campas,
deixou os trabalhos de limpeza para me dizer:
-- Foi um
senhor que foi para o Brasil que o mandou fazer.
-- Pois
foi, respondi-lhe eu. E para lhe provocar maior espanto acrescentei: Deve estar
escrito algures que o senhor era "negociante no Brasil".
Isso sabia
ela porque, com a flôr que tinha na mão, logo me indicou o seu lugar. Clélia de
Oliveira Loureiro, assim se chamava a mulher de boné, vestida de preto.
Explicou-me ser o mausoléu pertença da família. E retomou o trabalho de limpar
e renovar os arranjos florais. Sobre as pedras tumulares, entre flores e
lamparinas de óleo, viam-se placas com os nomes de outros familiares que
ali repousam. No suceder das gerações tem-se renovado os ossos Sucedem-se em
camadas, ajudando a perceber o sentido do tempo e a importância da família.
Era
sábado, pouco passava das três da tarde, e apesar de um sol abrasador eram
muitas as mulheres limpando, compondo flores, cuidando dos túmulos. Pareciam
fazê-lo com a urgência de quem, com arranjos florais, materializa o amor e o respeito
pelos mortos.
“É um
culto”, escrevo na breve missiva que envio para Marcelina Drummond dando-lhe
conta do sucedido. Do Brasil veio a resposta que confirma uma identidade que
nem a distância ou o passar dos séculos consegue desfazer:
“As
mulheres que arranjam o cemitério e enfeitam túmulos, o fazem como tarefa
sentimental, espontânea, cotidiana. Disse nosso antropólogo Roberto Da Mata
que, no Brasil, nossos mortos são vivos, tal é a convivência que com eles
mantemos na lembrança, na memória. Um traço cultural, sem dúvida, herdado de
vocês.”
Belino Costa