23 de junho de 2014

UM PARAQUEDISTA DE ESTALO


No dia 18 do passado mês de maio foi a enterrar o Manuel dos Santos Grangeia, que vivia ali ao fundo da Barreira, pouco antes de se chegar às cerâmicas.
Tinha 72 anos e desde sempre o conheci como pessoa muito fechada sobre si, parecendo viver num mundo à parte, um mundo cheio de diabinhos a querer dar conta dele e ele a resistir, um resistir cada vez menos, até ter acabado como uma amostra do herói que conheci na juventude, que a guerra contra os fantasmas não é das que se ganham aos xutos e pontapés e muito menos à estalada.

Entre meados de 1971 e 72, trocávamos uns dedos de conversa quando aos fins de semana aparecíamos por Bustos e se proporcionava. Afinal, tínhamos então um ponto em comum, que começava a marcar-nos o corpo e a alma: o serviço militar e, com ele, a ida para a guerra em África.
Lembro-me dele falar da sua rebeldia e inconformismo no corpo militar a que pertencia – os paraquedistas, conhecidos por páras, essa tropa de elite como nenhuma outra.
Na tropa e em especial nas unidades de elite, a rebeldia tinha e tem um preço certo: punições atrás de punições. Contava-me ele, de sorriso maroto nos lábios, que os sargentos e alfereszitos que ousavam mandar naquele mundo muito dele, só dele, acabavam esticadinhos no chão, à mercê das suas mãos fortes e destemidas.
Por coincidência, fomos contemporâneos em Angola: ele, como soldado paraquedista no leste e eu, como alferes miliciano de operações especiais um pouco por todo o norte da então província portuguesa, incluindo Cabinda. 
O Manuel passou anos a fio na tropa, penso que em resultado das sucessivas punições.
De alguma forma, o Manuel Grangeia foi um dos meus ídolos: admirava nele aquele arcaboiço invejável, prontinho para a pancada, viessem quantos viessem. Apesar do mistério por detrás da sua personalidade fechada, das palavras poucas, muito poucas, admirava também nele a autoconfiança que parecia transbordar.
Do Manuel Grangeia fica um episódio único, um ato de valentia que a malta daquele tempo recorda como se fosse hoje. O episódio é mesmo tema de conversa de barbearia, como diria o vizinho e amigo Carlos Alves, barbeiro para todo o serviço, a quem agradeço as fotos do Manuel que me trouxe às mãos.
Episódio fácil de narrar, em três penadas, quase tantas como as que o Manuel precisou para pôr os pontos nos ii aos militares que ousaram fazer-lhe frente. Aqui vai:
O nosso pára veio de licença de fim de semana a Bustos mas “esqueceu-se” de regressar ao quartel na madrugada de 2ª feira. Entrou naquilo a que chamávamos ausência ilegítima, figura que a breve trecho conduz à deserção.
Logo chegam ao posto da GNR de Bustos instruções rigorosas: deter o nosso pára e conduzi-lo sob custódia, creio que à base militar paraquedista sediada em S. Jacinto.
E lá foi virada à Barreira a pobre força da GNR, comandada pelo cabo Domingos ou Celso, já não sei bem.
Chegados à casa dos pais do Manuel, logo ali o acharam, que ele não era homem de se perder pelo mundo fora, era um agarrado às raízes de que dependia, uma espécie de adicto.
Como é bom de ver, a bem ou a mal, a missão era levá-lo com eles. Lá tentar, tentaram, o pior foi o resto:
Mesmo armados com a velha espingarda mauser, acabaram todos estatelados no chão, pela força dos murros, estaladas e outros golpes aprendidos pelo Manuel na dura e muito rigorosa instrução militar que era apanágio das forças paraquedistas.
Era mesmo de estalo, o Manuel Grangeia que há pouco nos deixou!

A talhe de foice: será que isto também só lá vai à estalada?

Sem comentários:

Enviar um comentário