No dia
18 do passado mês de maio foi a enterrar o Manuel dos Santos Grangeia, que
vivia ali ao fundo da Barreira, pouco antes de se chegar às cerâmicas.
Tinha 72
anos e desde sempre o conheci como pessoa muito fechada sobre si, parecendo viver num mundo à parte, um mundo cheio de diabinhos a querer dar
conta dele e ele a resistir, um resistir cada vez menos, até ter acabado como
uma amostra do herói que conheci na juventude, que a guerra contra os fantasmas não é das que
se ganham aos xutos e pontapés e muito menos à estalada.
Entre
meados de 1971 e 72, trocávamos uns dedos de conversa quando aos fins de semana
aparecíamos por Bustos e se proporcionava. Afinal, tínhamos então um ponto em
comum, que começava a marcar-nos o corpo e a alma: o serviço militar e, com
ele, a ida para a guerra em África.
Lembro-me
dele falar da sua rebeldia e inconformismo no corpo militar a que pertencia – os
paraquedistas, conhecidos por páras, essa tropa de elite como nenhuma outra.
Na tropa
e em especial nas unidades de elite, a rebeldia tinha e tem um preço certo: punições
atrás de punições. Contava-me ele, de sorriso maroto nos lábios, que os
sargentos e alfereszitos que ousavam mandar naquele mundo muito dele, só dele,
acabavam esticadinhos no chão, à mercê das suas mãos fortes e destemidas.
Por
coincidência, fomos contemporâneos em Angola: ele, como soldado paraquedista no
leste e eu, como alferes miliciano de operações especiais um pouco por todo o
norte da então província portuguesa, incluindo Cabinda.
O Manuel passou anos a
fio na tropa, penso que em resultado das sucessivas punições.
De alguma
forma, o Manuel Grangeia foi um dos meus ídolos: admirava nele aquele arcaboiço
invejável, prontinho para a pancada, viessem quantos viessem. Apesar do
mistério por detrás da sua personalidade fechada, das palavras poucas, muito
poucas, admirava também nele a autoconfiança que parecia transbordar.
Do
Manuel Grangeia fica um episódio único, um ato de valentia que a malta daquele
tempo recorda como se fosse hoje. O episódio é mesmo tema de conversa de barbearia,
como diria o vizinho e amigo Carlos Alves, barbeiro para todo o serviço, a quem
agradeço as fotos do Manuel que me trouxe às mãos.
Episódio
fácil de narrar, em três penadas, quase tantas como as que o Manuel precisou
para pôr os pontos nos ii aos militares que ousaram fazer-lhe frente. Aqui vai:
O nosso
pára veio de licença de fim de semana a Bustos mas “esqueceu-se” de regressar
ao quartel na madrugada de 2ª feira. Entrou naquilo a que chamávamos ausência
ilegítima, figura que a breve trecho conduz à deserção.
Logo
chegam ao posto da GNR de Bustos instruções rigorosas: deter o nosso pára e
conduzi-lo sob custódia, creio que à base militar paraquedista sediada em S.
Jacinto.
E lá foi
virada à Barreira a pobre força da GNR, comandada pelo cabo Domingos ou Celso,
já não sei bem.
Chegados
à casa dos pais do Manuel, logo ali o acharam, que ele não era homem de se
perder pelo mundo fora, era um agarrado às raízes de que dependia, uma espécie
de adicto.
Como é
bom de ver, a bem ou a mal, a missão era levá-lo com eles. Lá tentar, tentaram, o pior foi o resto:
Mesmo armados com a velha espingarda mauser, acabaram
todos estatelados no chão, pela força dos murros, estaladas e outros golpes
aprendidos pelo Manuel na dura e muito rigorosa instrução militar que era
apanágio das forças paraquedistas.
Era
mesmo de estalo, o Manuel Grangeia que há pouco nos deixou!
A talhe de foice:
será que isto também só lá vai à estalada?
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