26 de maio de 2010

BUSTOS TEVE VIAS FLUVIAIS





Não é fácil aos habitantes radicados num lugar perceber as mudanças por que vai passando o seu habitat no tempo longo. As gerações vão-se sucedendo e as memórias sumindo naturalmente. Pequena é, portanto, a noção que recolhemos das transformações sofridas pelo terreno no qual, vivendo, apoiamos os pés. Valha-nos, então, a leitura dos papéis antigos com valor para a história local.
Ainda assim, é possível a uma pessoa idosa quanto baste evocar recordações da sua infância que causarão surpresa a conterrâneos agora também na meninice mas que já não chegam a tê-las. Eu lembro-me de, na primeira infância (anos ’30), encontrar em Bustos diversos regatos e ribeiros de que hoje resta simples lembrança ou já nem isso. A velocidade das transformações não cessa de crescer e, neste quadro, o fenómeno geral do assoreamento dos terrenos é dos mais determinantes.

(fotos aqui)

Em diferentes ocasiões, referi as principais linhas de água que drenavam os terrenos desta freguesia. Afirmei mesmo que o seu perímetro era assinalado por linhas de água e que os primeiros pontos habitados foram certamente as coroas das nossas colinas. Novidade, desde logo, foi o designado «ribeiro de Bustos»: cruzava o centro da freguesia e pedia ponte em 1832. Anotei também o velho topónimo «porto do Vouga». Esclarecendo, insisti que o rio Boco desagua na ria de Aveiro e que foi navegável até à Malhada; e lembrei o ribeirinho que demarcava o Sobreiro da Feiteira (Troviscal), passando por trás do colégio, e do Areeiro (Palhaça). Retomo hoje o assunto para melhor elucidação deste dois últimos tópicos.
Mercê de indicação de Armor Pires Mota, chegou-me fotocópia e transcrição de um documento do século XIV alusivo, exactamente, ao dito ribeirinho que ainda conheci no limite do Sobreiro. Corria num vale de verdejante capim, lá onde se via uma azenha com represa. O documento, um aforamento de D. Dinis, situa na «Feiteira Velha», da freguesia do Troviscal, o «porto de Sanguinheira» (sic), autorizando, nomeadamente, que no local o arrendatário «faça um moinho de água» (TT, chancelarias de D. Dinis, Livro IV, fl. 64 v,). Conclui-se, nesta base, que o ribeirinho ainda existente nos anos ’30 era navegável naquele outro tempo.

Quanto ao rio Boco, a questão anda embaraçada em confusões ociosas ou inúteis. Sabe-se que o Boco demarca freguesias, concelhos e distritos diferentes, tal como se sabe que foi navegável – e, sem dúvida, via fluvial importante, bem mais do que terá sido alguma vez a linha de água do Sobreiro-Feiteira. Esta, com o seu «porto da Sanguinheira», seria sulcada por ligeiras embarcações, ao passo que o rio Boco permitiu durante séculos a entrada de navios. Chegou a ser considerado «braço de mar».

Vale a pena notar um documento de 1296 - «Inquirição e registo dos foros impostos aos moradores de Verdemilho, Ílhavo, Vagos e Sorens» – (Milenário de Aveiro-Colectânea de documentos históricos, org. por António Gomes da Rocha Madahil, ed. Câmara Municipal, Aveiro, 1959, p. 101). Indica claramente que navios aportavam então na Malhada, topónimo que há muitos anos me inculcaram como derivado de barcos «emalhados» em portinho de abrigo. Há registos de uma Malhada de Baixo e outra de Cima, porventura a sugerir uma descida gradual do nível do rio. A tradição oral atribui à povoação uma idade vetusta.

Isto confere ao rio Boco a importância que teve mas que parece agora resultar inacreditável a quem o vê quase a secar nos limites de Bustos. Persistem alguns vizinhos em chamar ao rio outros nomes – vala do Sardo, rio Salgado, ribeiro do Tabuaço, ora nascendo junto de Covões, ora em Balsas, freguesia de Febres – sem cuidar que os locais têm por hábito nomear a seu talante o que lhes passa à porta. Mas não façam os modismos populares esquecer o que sabe quem sabe.

Acautele-se porém quem se fie às cegas em enciclopédias e outras fontes consultáveis. Nem sempre estão limpas de erros e confusões. A própria localização da nascente original de um rio é, como se vê, amiúde controversa. Mas uma experiência no terreno traria dados positivos: bastaria seguir o vale do rio Boco actual, medindo-lhe a envergadura. E lendo pelo caminho umas páginas velhas até chegar às Azenhas do Boco ou até Vagos, por exemplo um trecho de carta de 1461 (venda que Pedro Gonçalves Robalo e sua mulher fazem a D. Mécia Pereira de diversos bens):
«Duas azenhas, que estam em hum lugar, que chamão o Bóco termo de Souza, das quaes ora são moleiros Pedro Vasquez morador do dito logo de Souza, e Gonçalo Gil morador em Ouca; Outro Si vos vendemos mais huma marinha, [de sal] que chamão de farêja, que parte de huma parte com vêa do rio de Vagos, e de outra com marinha»… (Milenário de Aveiro-Colectânea…, idem, ib., 1959, p. 225).
Enfim, documentos do passado o dizem: Bustos teve vias fluviais.
Arsénio Mota

3 comentários:

  1. Alcides Freitas17:45

    Ao longo dos tempos, o Arsenio Mota tem-se empenhado em documentar as grandes alteracoes fisicas que tem ocorrido com as vias fluviais da regiao. Mas nao devemos esquecer que aqueles regatos, valas, ribeiros que foram destruidos ou significamente alterados, exerciam funcoes muito importantes na drenagem dos terrenos da regiao. Sera que os individuos responsaveis pela ordenacao do territorio estao cientes das consequencias desta destruicao?

    Alcides Freitas

    ResponderEliminar
  2. Ainda me lembro da represa que existia no ribeiro que passa pelo Colégio do Sobreiro (IPSB).
    Represa que certamente alimentava um qualquer moinho.
    Essa represa de água era frequentada pela malta nova, que ali se banhava.
    Aí foram apanhados, imersos na água como Deus os trouxe ao mundo, dois jovens apaixonados.
    Ele foi "desterrado" para o Brasil, que amar alguém pertencente a um estrato social inferior era fruto proibido.
    Ela, linda de morrer, ainda é viva...
    O progresso (a chamada civilização) pode ter acabado com algumas discriminações sociais; mas também enterrou muitas das nossas ligações à mãe-natureza.
    Amores e desamores.

    ResponderEliminar
  3. Anónimo07:49

    Curiosidade:
    (Pergunta para o Oscar)
    "......Ela, linda de morrer, ainda é viva...

    E êle! Já morreu?

    ResponderEliminar