3 de julho de 2006

ARSÉNIO MOTA: UM MO(NU)MENTO DE VIDA

“ O texto literário não é apenas lido pelo leitor, também o leitor é “ lido” pelo texto na medida em que sobre ele se pronuncie.”

in Quase tudo nada, pag 41

A primeira dimensão do livro é física. O seu tamanho, a forma, a capa estabelecem um primeiro contacto. Muitas vezes essa dimensão-objecto é uma fronteira, constitui um discurso autónomo do texto que encerra. Não é o caso de “Quase tudo nada” onde a existência física do livro, o seu manuseamento, se torna parte integrante do texto.

Na capa vemos o autor (ou alguém por ele) que espreita à janela, e nós espreitamo-lo. Por cima do ombro. Ele contempla a “sua existência como um fio singelo a desenrolar-se”. Espreita-se.
E tal como a vida é feita de avanços e recuos, de buscas, também o livro assim nos é servido. Os vários capítulos não estão dispostos segundo a sua numeração. É preciso procurá-los, andar para trás e para a frente porque, avisa Arsénio Mota, o leitor deverá ater-se à numeração romana de (I a VIII). Quer assim que o acto de procurar o capítulo seguinte, o vai e vem do desfolhar das cento e vinte seis folhas que compõem a narrativa, tenha a dimensão de um subtexto e nos interrogue. Que imitando a própria vida o leitor se confronte com avanços, recuos, indecisões, procuras, enganos…

“Quase tudo nada” é o momento em que o Arsénio Mota, escritor, espreita o Arsénio Mota, cidadão. Desde o berço na aldeia bairradina, até ao quotidiano na cidade do Porto. Fala da sua passagem pela Venezuela, relata as torturas infligidas pela PIDE, disserta sobre as mulheres e o amor.
A personagem central da narrativa biográfica é Tumim, e um leitor mais desatento julgará que o autor se esconde. Estará a cometer um erro porque se na aparente desordem dos capítulos o autor nos interroga e nos provoca, de novo nos interpela quando, na terceira pessoa, narra a história desse tal Tumim, que não é nem um heterónimo nem um alter-ego, mas uma parte de si ou, se assim o entendermos, uma parábola.
Ao contar certos episódios de uma longa vida e não outros, (resultado de “sucessivas decantações íntimas”), ao ignorar a sua actividade literária, Arsénio Mota faz uma opção essencial. E é usando a dimensão literária do texto que disso nos previne. Ele sabe que nós o espreitamos enquanto ele se espreita. Não perde tempo a olhar para traz, mas tem o cuidado de nos avisar que está a contar a história “de um outro TU que há em MIM.” Deixa claro que lhe interessa a parte, mas não o todo, que se atem apenas ao que vê quando espreita daquele canto específico da janela.

A concepção é inovadora, subtil, inteligente, busca a cumplicidade do leitor, provocando-o, e reinventa a narrativa biográfica. A escrita é fluida, apaixonante, revela-nos Arsénio Mota na dimensão dessa outra obra, a dos dias comuns de um cidadão nascido em Bustos. E ele próprio se interroga: “Um romance pode vir a ser uma obra de arte. Mas poderá sê-lo também uma vida?”
A resposta é “Quase tudo nada”, onde a autenticidade da narrativa se cruza com a força encantatória do romance. Do que resulta, para usar palavras de David Mourão Ferreira, ”um monumento de palavras.”

Belino Costa

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