27 de maio de 2005

Memórias em Recuperação com Clara Aires

Quando queremos alguém que nos ajude a andar para trás no tempo, e que nos permita concretizar a fantasia de reconstituir momentos do passado de Bustos no presente, com autenticidade, lembramo-nos de imediato de alguém que, desde há quase duas décadas, se deixou apaixonar pela arte de recolher os mais variados testemunhos do passado, dedicando-lhe grande parte das suas forças e economias.

Obviamente falamos de Clara Aires, mulher decidida, apaixonada, exigente e que pelo rigor que o seu trabalho lhe exige, nem sempre é compreendida. Todos os fins-de-semana percorre Bustos de uma ponta à outra, na incansável esperança de mais… mais uma peça, mais um testemunho, mais uma flor, mais uma fotografia mas mais… mais qualquer coisa que lhe permita crescer nesta busca incessante pelo conhecimento dos costumes e trajes característicos da sua terra.


Clara Aires – Acção Etnográfica integrada nas Janeiras 2003 – Orfeão de Bustos

Conheço a Clara (sem preconceitos de títulos, que a sua obra é mais importante que qualquer título académico) há apenas 7 anos, e de perto pude acompanhar muito do seu trabalho, as suas preocupações e obstáculos, as suas motivações e conquistas. Hoje quando ao telefone para acertarmos algumas ideias sobre os quadros etnográficos a apresentar no Cantábus 2005 – Festival de Música Tradicional, não resisti a conduzir uma pequena entrevista que há tempo tinha pretensão de concretizar.

Calmamente as perguntas e respostas foram-se sucedendo. Foi com grande interesse que fui ouvindo o que tinha para me dizer. Frisou por diversas vezes que, embora tenha iniciado o trabalho de recolha e pesquisa há 16 anos, considera que é há cerca de 4 anos que tem trabalhado com os conhecimentos que lhe permitem, como a própria diz “errar menos”. O rigor na obtenção de materais adequados, o aconselhamento com pessoas com os mesmos interesses e o recurso a artesãos, alfaiate e modista de confiança, têm sido indispensáveis para o sucesso do trabalho da nossa conterrânea.

Há sempre alguns obstáculos que se levantam na reconstituição dos seus quadros etnográficos. Alguns deles relacionam-se com a composição dos próprios tecidos, os quais, por exemplo, hoje raramente são 100% lã ou 100% algodão. A dificuldade em identificar as características exactas das roupas em fotografia faz com que, por vezes, tenha de recorrer ao pedido de mais informações ou mesmo recorrer a auxiliares de visão como a lupa. É um trabalho de paciência e dedicação!

Como repetidamente me diz também “eu não faço nada sozinha”. Esta sua afirmação é sincera e quanto a mim de especial significado. Se por um lado revela o interesse que tem em ter a certeza que o seu trabalho é uma reconstituição fiel do passado, trocando impressões com várias pessoas, por outro, a frase revela também que é um trabalho de grande dimensão que necessita do contributo de todos os bustoenses e tantos quanto se lhe possam juntar. A participação em Congressos de Etnografia em Coimbra e o aconselhamento com pessoas de reconhecida credibilidade na área da etnografia, nomeadamente, José Maria Marques ( de Sever de Vouga e já falecido) e Messias da Silva (Pampilhosa), têm-lhe dado o alento necessário para conduzir a sua pesquisa e trabalhos de reconstituição de forma cada vez mais exigente e confiante.

O importante seria, de facto, criar nas pessoas em geral, o gosto pela preservação dos bens e tradições. A negação do passado empobrece o presente. Precisamos de conhecer o passado, de o comparar com o presente, de concluir o que ganhamos e o que perdemos. Sem essa atitude não deixamos de cair sempre nos mesmos erros. Quando se diz que os “portugueses têm a memória curta” sabemos que essa verdade tem tido o seu preço! E a verdade é que não há vantagens em subtrair o tempo. Há vantagens em entendê-lo e actuar em função dessa aprendizagem.

Talvez consciente da importância do seu trabalho, tem desenvolvido várias acções junto das escolas primárias, com finalidade pedagógica. Acredita que pode enriquecer as crianças e criar nelas a respeitabilidade necessária para que se possa apreciar e dar valor às recolhas e reconstituições realizadas.

Falámos também dos trabalhos que já apresentou em público, e lembra-se perfeitamente que o primeiro foi com os Cantares Populares. Com a associação Orfeão de Bustos a colaboração tem sido muito frequente e irá, inclusive, a convite da Direcção da mesma apresentar no Cantábus 2005 por ocasião do desfile, aquele que considera ser o trabalho de maior rigor apresentado até hoje.

Clara Aires colaborou ainda em diversas acções com escritores, Junta de Freguesia de Bustos, Escolas, Associações de Solidariedade Social, Cortejos, etc.

O meu desejo, e acredito que o de Clara Aires e de muitos bustoenses também, será o de poder ver, mais tarde ou mais cedo, o resultado de uma recolha tão rica, importante e necessária, num local digno onde todos possamos ir beber um pouco da sabedoria popular através da contemplação e aprendizagem com a reconstituição de trajes e costumes de um Bustos que se situa entre finais do sec XIX e princípios do sec XX, período onde residem as últimas referências do traje característicamente português.
Regina Alves
Posted by Hello

1 comentário:

  1. Anónimo19:18

    Um bom momento do NB (Notícias de Bustos). Regina Alves mostra neste “jornal de janela” o perfil da Clara Aires Guitas, uma mulher de armas na pesquisa e aprofundamento da alma de Bustos. Figura magra, tem calcorreado quilómetros e quilómetros a pé, sempre na busca de encontrar um objecto, uma peça genuína, uma informação ou um esclarecimento. É uma peregrina da etnografia.
    Clara Aires Guitas, que tem animado e mostrado o seu trabalho em eventos oficiais e/ou particulares, ainda que não ande atrás de condecorações, tem mais que fundamentos dignos de receber a Medalha de Ouro do Município (ou já teria recbido?
    No tempo atrás do antes de anteontem cultivava-se linho. Haverá possibilidade de restaurar essa cultura, enquadrada na etnografia local?

    Ao Cantábus’2005, em Bustos. Almejo bom êxito. E boa reportagem.

    Uma nota: José Maria Marques assinalado no texto seria o de Águeda. Foi um carola na defesa do Grupo Folclórico da Região do Vouga. Há anos, durante uma visita guiada ao “seu” Museu etnográfico na Mourisca do Vouga, informou que tinha recolhido mais de 30.000 peças e que não estavam expostas, “porque não tinha espaço”… Este Museu, aqui tão perto, merece estar no roteiro das visitas obrigatórias.

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