MARÉ ALTA – Personagens folclóricos de minha infância
(Registros de uma saudade)
Por: Aristides Correia Arrais
Ao passar pela vida, ao longo do tempo, em qualquer lugar, sempre nos deparamos com a existência de personagens, alguns especiais, outros folclóricos que, na maioria das vezes, tornam-se bem marcantes: Uns por reconhecido serviço prestado à comunidade; Outros, por figurarem como criaturas estravagantemente pitorescas
E em todos os lugares deste planeta terra, perambulando cambaliadamente pelas ruas, encontramos sempre figuras apalermadas, algumas beberronas agressivas e malcriadas; outras, completamente alienadas a falar ediotices, motivo de riso e galhofa; Contemplamos ainda o contador de histórias nato ou, quando não, um emérito contador de piadas, além do mentiroso, o contador de vantagens, o artista emitador, o recitador de poemas.
Em meu universo de juvenil criança, foi grande o número de personagens que constituiram o imaginário de uma cultura comunitária da aldeia em que nasci. E alguns, cada qual com sua característica personificada marcaram de forma inesquecível, a minha jamais olvidada origem portuguesa.
Um senhor do mundo
Existiu um andarilho, o Portugual, que aparecia ciclicamente pelo lugar com uma trouxa de quinquilharias às costas, especialista em catar caracóis, assá-los e comê-los. Isto era motivo de ignaro fastio das pessoas mais adultas. As crianças então, ao verem o gosto com que ele sorvia o seu petisco, chegavam a ter âncias de vômito, tal a repugnate aversão que causava esse tipo de “iguaria”. Não se tinha conhecimento de qualquer outro alguém que comesse esse molusco gosmento (Afinal, um apreciado prato – escargot - da colinária francesa), aparentado à lesma.
O bom vinho da Bairrada: Uma atração!
Personagem local, a ti Papoila era uma mulher já de certa idade em permanente estado de embriaguez que vinha para o meio da rua a "fazer discursos", falando impropérios e outras tantas patetices, alguamas vezes de saia levantada. Esta marcante criatura tinha uma descendência que, certamente por hereditariedade, sempre ofereceram apego de familiaridade com o deus Baco, graças à demonstração de gosto e apetite a um bom suco fermentado da saborosa uva tinta do lugar.
A moradia de ti Papoila era o que poderíamos chamar de casa da mãe Joana. Um dia, apareceu no Sobreiro uma modesta família de nortistas (com uma porção de filhos) que acabou por ficar morando numa parte das dependências da casa daquela criatura residente no lugar. O chefe dessa família viajava ciclicamente para Lisboa a fim de trabalhar numa determinada atividade durante certo período do ano. Em seu regresso, com algumas patacas no bolso, a situação do quotidiano em família tornava-se normal, sendo isso notado pelo comportamento então descontraído e alegre da filharada. Todavia, durante a ausência paterna, a coisa ficava crítica com a garotada espalhando-se pelos arredores a fim de conseguir aqui e ali, alguma coisa do campo ou de possível caridade que minorasse a sua fome. Mas a mãe, querendo dar uma demonstração de que em casa, de comida nada faltava, vinha para a rua e, em uníssimos gritos deitava-se a chamar pelos filhos soltos pelos arredores, instigando-os a que viessem comer o que ela havia preparado. Jamais me fugiu da memória uma constante cena em que figurava uma das filhas que deveria ser a mais velha, de nome Estrela, a protagonizar o seguinte diálogo:
- Óisteula!... Baem comê souda! Ó Is teula!... Baecomêssooooouda!
E o chamamento se repetia até ser sonoramente ouvido, uma patética resposta da filha que quase sempre se encontrava pelas redondezas:
- Meuda, meuda pa tanta souda.
Áhhh! Os tremoços
Ainda hoje quando encontro em algum supermercado, tremoços cortidos, compro um ou dois kilos para matar a lembrança juvenil de minha única extravagância possível, graças aos tostões que todo o fim de semana recebía como que dádiva “sacra” de um tio padrinho (Inicialmente era um tostão. Depois o presente foi dobrado: dois tostões) E aí, vejo-me caminhando pela rua de paralelepípedos no trecho entre a taberna dos Motas e a tasca de Antonio Naris até o encontro da ti Galega, filha ou mãe, a fim de transformar em desejado sabor, aqueles tostões recebidos. Havia um outro apregoador de tremoços semi-ambulante, Zé da Sabastiana, de duvidosos trejeitos, fala fina e esganiçada, cesta oval pendurada num dos antebraços, de quem nunca comprei nada, posto que ouvira falar que o produto oferecido não era lá muito bem curtido...
Só mais um copo...
Outra figura ímpar que até hoje habita minha memória de juvenil criança, muito conhecida e folclórica foi o Sebastião da Reisinha. Este cidadão, muitos anos antes, imigrara para a América do Norte, tendo acumulado uma razoável poupança. Anos depois, voltou difinitivamente para a sua terra natal. Tranquilo, vivia ocupando o dia passeando de bicicleta pelos lugarejos da aldeia, bebendo um copo de vinho aqui, outro ali até se tornar, no tempo, um alcoólatra enveterado e personagem folclórico por vezes chato, por vezes engraçado com acentuada presença de espírito. O pessoal costumava mexer muito com ele ou para vê-lo divertidamente enfezado ou para ouvir dele alguma idiotice rediculamente hilariante.
Nuncafu...
Com o correr do tempo, Sebastião da Reisinha, acabou por afirmar-se com um refrão sempre repetido tendo como desfecho, popular palavrão: "Nunca fu... endo!" Qualquer coisa que lhe fosse falado, ele olhava com aquela cara de caricata boemia, cabeça rigidamente fincada no pescoço, um pouco retraída como se estivesse pensando e assimilando o que se lhe tinha sido dito e lá vinha o palavrão com toda a conotação de bêbado, para risada dos presentes: Nuunca fufu... endo! Certa ocasião havia um ajuntamento de pessoas conversando num dos lados da rua, no centro da freguesia bem em frente ao estabelecimento dos Serafins, no qual se encontrava também o pároco da igreja matriz. Quando Sebastião da Reizinha chegou junto ao grupo com um embrulho na mão, um dos presentes, gozador, foi logo mexendo com ele:
-Que embrulho é esse, Sebastião?
E ele já muito bêbedo, mal se segurando de pé com a bicicleta à mão:
-Iiiisto aqui sãããão uns quiquiquilos de cacarne de cacaarneiro que fui cooompraire ai nu Sbreiro papara...
Neste momento foi interrompido por um dos presentes:
-Ah! Jássei! Parufereceire aqui pró senhoire priore q fazanos zoje!
Sebastião olhou para o padre, olhou para cada um dos presentes, pensativo e sapecou:
-Nuuunca... (e, fixando uma vez mais, o padre, respeitosamente) Nonoé memesmo! Nunununcaa... nonoé memesmo sessenhoire pppriioore!
E, por consciente ação de abstração pecadora e absoluto respeito eclesiástico deixou de soltar o tão conhecido e confesso palavrão!
A seguir pegou a bicicleta e lá se foi pedalando, ocupando a curtos espaços de tempo, ora o lado direito ora o lado esquerdo da rua. Cambaliando em zig zag, ia pedalando o difícil mas bem conhecido percurso de casa, montado em cima da bicicleta da forma que a velocidade permitia, com surpreendente equilibrismo de malabarista, quase sempre sem cair.
A frota da aldeia
Para o bem daquele personagem, veículos em trânsito por ali eram raros. Especificamente na aldeia de Bustos, transitando nos primórdios da minha infância, poderiam ser contados, nos dedos de uma das mãos: Ao todo, na freguesia existiam uns seis ou sete automóveis se tanto, muito difícil de serem vistos simultâneamente nas ruas do lugar; Caminhões, uns dois. Sobre a existência de carros havia um pertencente a uma pessoa moradora da Póvoa que era de aluguel (aluguer), para atendimento de uma população que deveria girar em torno de possíveis três mil pessoas.
Como boa lembrança de museu, existia um ford de bigode, de propriedade do ti Pardal. Esse fordeco para funcionar precisava ser acionado por uma manivela portátil introduzida num determinado ponto do motor localizado na frente do veículo. Este personagem da terra, afeito à medicina, que serviu com reconhecida dedicação a uma população mais carente, bem que merecia uma justa e grata biografia.
Tempos idos que certamente só restam na lembrança de poucos, mas que aqui colocamos como singelo registro do um já tão longínquo passado.