10 de janeiro de 2010

Mais uma porta fechada…



Cabeço de Bustos, Janeiro de 2010

Mais uma porta fechada…

Éramos vizinhos e, sobretudo, amigos.
Antes de chegar a casa, era ali que parava para o cumprimentar, ver no seu rosto a alegria com que me recebia. Ele e a esposa.
- Olá, Irenita, já vieste?

Foi ainda há tão poucas horas que estive com ele. Sentado à mesa, saboreava o jantar e os «mimos» com que a sua Belarmina, sempre atenta, o rodeava.
- Feliz Ano, Sr. Fontes!

Senti-o um pouco mais cansado do que o habitual. Mesmo assim não perdera a indómita força de viver e o sorriso aberto de quando lhe entrávamos porta dentro, quase sem avisar.
Era o futebol a sua grande paixão. Mas em primeiro lugar, o filho (emigrante nos E.U.A.) e os netos - que idolatrava! O Tino e a Michelle!

A sua lucidez era impressionante.
Falou da compra e venda de jogadores, dos milhões investidos, dos melhores treinadores, do seu Clube favorito – o Futebol Clube do Porto – e das suas equipas do coração: a União Desportiva de Bustos e a nossa Académica!

- Leva umas tangerinas, filha…. São tão doces!

Abre os álbuns fotográficos e relata, pausadamente, mas com orgulho, os momentos mais marcantes da sua vida de ouro. Quantos amigos! Aqui e além, uma cara minha conhecida…
Fora brilhante! Presidente, durante dez anos, do Portuguese Sporting Club, em Perth Amboy, New Jersey, não poupou esforços para fomentar a aprendizagem da língua portuguesa, tendo sido o fundador da primeira escola com essa finalidade.


- Hoje sou um homem crente! Fiz um Curso de Cristandade que mudou radicalmente a minha vida…
… voltar para a América? Não, quero ficar aqui, na minha terra… ir um dia destes para a porta do Zé Valério…. Sinto-me tão bem, dou os meus passeios, vou ao futebol, tenho sempre o meu lugar reservado no campo do U.D.B. Gosto de ver a rapaziada jogar…

- Vens cá amanhã?
Voltei atrás para lhe dar mais um abraço naquele Ano Novo renovado de esperanças…

Foi à tarde. Senti, abruptamente, mais uma porta fechada na minha meninice quase reencontrada.
Ou talvez não….
A manhã irradia! Abro a porta da cozinha e os meus olhos procuram-nos no quintal…
Ele lá está, precisamente onde o deixei, sentado ao sol, as pernas negando-se a obedecer-lhe….
Socorre-se da cadeira eléctrica.

- Foi o meu filho que ma mandou da América, trouxe-a o Fernando…. E conta, divertido, o episódio do amigo, num coxear fingido, para conseguir trazer, no avião, sem problemas, o almejado veículo…

Lida, junto à casa, a sua companheira inseparável, no cantinho de terra que reservou para si, plantando, regando, mondando, vendo crescer cada couve, cada alface, cada bago de milho no quintal extenso…

Aceno, de longe:
- Olá, Sr. Fontes! Bom-dia!
Levanta a mão direita, num afago...

O sol de Setembro torna mais doiradas as espigas no campo, que na primavera é todo verde, salpicado aqui e além de papoilas vermelhas, delicadas bailarinas na valsa do vento…

- Demoraste…. Já pensava que não vinhas…

Para a Belarmina, ele era o centro do mundo.
-Vem cá, Belarmina!
Logo acudia, pressurosa, realizando a cada instante, sem se cansar, as mais ínfimas vontades.
No Hospital, onde ele estivera algum tempo, passava as tardes a fazer-lhe companhia.
- Posso fazer a barba ao meu marido? - pedia, mais do que perguntava.
- Desde que não lhe corte o pescoço… – brincava, divertida, a enfermeira.
- Não, que não é mulher para isso!

Levava com ela todos os apetrechos e cortava-lhe a barba com minúcia e desvelo. Penteava-lhe para o lado, ensaiando uma risca perfeita, o bonito cabelo branco e ajeitava-lhe a roupa com ternura. Depois, abria os frasquinhos com cuidado: primeiro o desinfectante, em seguida os cremes…, os perfumes a finalizar. E quedava-se, feliz, a admirá-lo, agora rejuvenescido no seu belo porte de homem atlético!

- Vamos fazer uma sociedade?
E já cantavam, garbosos, os muitos galos na capoeira, no meio das duas pequenas galinhas que se refugiavam, aflitas.
- Queres ver o que cantou primeiro? Foi aquele! Mas foi um grito tão rouco que até o próprio se assustou!

- Telefona, Belarmina! Ela ainda não veio… pode estar doente…

Estão todos comigo... A sua voz junta-se a outras vozes e adoçam-me os caminhos e as memórias em permanente retorno, o chão e os abraços (tão meigos!) que me acolhem no meu tempo de menina que por aqui procuro…

- Uma santa, a tua avó! Rezo-lhe o terço todos os dias!

… os figos de mel debicados dos pássaros, os diospiros esborrachados de maduros, as maçãs rosadas (ou eram verdes?) colhidas da macieira… e a porta a abrir-se de contentamento à minha chegada…

- Ainda bem que vieste!


Irene Micaelo
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N.B. - Hilário Costa "Em 1928 fui secretário da Assembleia Geral do Portuguese Sporting Club, de Perth Amboy, New Jersey". 12.3.07, ÀS VEZES TUDO PARA MIM ERA POESIA aqui

3 comentários:

  1. Belino Costa13:22

    Muito obrigado Irene pelo belíssimo texto e pela homenagem. Confesso que me comovi ao ler as tuas palavras e a olhar as fotografias.
    Os meus parabéns.

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  2. Irene Micaelo partilha com os leitores de ‘Notícias de Bustos’ o sentir da longa convivência com Artur Fontes e Família. Com larga experiência na marcenaria da palavra escrita, Irene Micaelo tem a magia de transformar a pedra bruta em filigrana. ‘Notícias de Bustos’ não desenrola o tapete vermelho para descer á janela, porque a autora repugna os adereços da pompa, mas espera editar uma pequena parcela da sua inspiração.
    Uma nota: as fotos que ilustram a peça ‘mais uma porta fechada …’, que vai prolongar a existência de Artur Fontes, foram escolhidas pela própria autora.
    Irene avança com o projecto que tens entre mãos, p.f. não arrumes o computador…
    ---
    sérgio. pr.mo

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  3. [Artur Fontes]não poupou esforços para fomentar a aprendizagem da língua portuguesa, tendo sido o fundador da primeira escola com essa finalidade.(escreveu Irene Micaelo]
    A língua ainda é o melhor veículo para conversar a ligação a Portugal.

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