31 de outubro de 2014

FILHO DO MANUEL DO SERAFIM

Crónica de
BELINO COSTA


Maria dos Santos Silva, Manuel Simões da Costa (ao colo) Serafim Simões da Costa e Augusto Simões da Costa


“De quem és filho, meu menino?” Naquele tempo não me era reconhecida identidade própria ou uma existência autónoma. Como ainda não era considerado uma pessoa chamavam-me criança que, o mesmo era dizer, aspirante a ser gente. Aos adultos pouco interessava o meu nome, essa irrelevância.
“De quem és filho, meu menino?” A pergunta vinha lá do alto e o instinto aconselhava-me a responder sem mostrar arrelia, “Sou filho do Manuel Costa”. A ver se assim se resolvia a questão e me deixavam em paz, que é o mesmo que dizer, se esqueciam da minha existência. Engano meu, na verdade tal resposta só ajudava a multiplicar as dúvidas e as irritantes perguntas. Fiquei assim a saber que Manuel Costa não era nome exclusivo. Havia outros, familiares ainda, com a mesma designação, pelo que a minha resposta não permitia uma inequívoca identificação.
Espantava-me aquilo. Era confuso imaginar diferentes pessoas com o mesmo nome, vivendo perto umas das outras. Pobre carteiro!
Vergado perante a complexidade do mundo adulto, fixei o olhar nos sapatos. Foi quando me inquietaram com nova interrogação, “E quem é o pai do teu pai, o senhor teu avô?”
Como se eu não soubesse que o pai do meu pai é meu avô! Apesar de ser tomado por estúpido e só para evitar mais aborrecimentos, respondi sem tirar os olhos do chão, “Serafim…”
Não foi preciso acabar a frase porque, a avaliar pela reação, o único Serafim que havia lá na terra era o meu avô. Só assim se explica a convicção com que o meu interlocutor exclamou, “Ah! És filho do Manuel do Serafim!”
No início com alguma indiferença e depois com algum entusiasmo compreendi que a minha identidade se confundia com a do meu pai, da mesma forma que a dele se confundia com a do meu avô.
A partir de então passei a responder tendo em conta o laço geracional, “Sou o filho do Manuel do Serafim”. Tanto bastava para me assegurar um lugar à mesa de café, mas só no caso de sobrar alguma cadeira depois de todos os outros se terem sentado. O que constituiu um admirável progresso.

Quando chegou o tempo de ir para a escola e se começaram a interessar pelo meu nome decidi manter a versão. E quando me perguntavam, “Como te chamas?” respondia, “Sou filho do Manuel do Serafim”.
Não havia nisso razão profunda ou filosofia infantil, dizia-o para poupar tempo e explicações. Assim não me via constrangido a ter que soletrar o meu nome. Eu dizia Belino e eles entendiam Avelino, Celino, Plino, e mais uma catrefada de nomes acabados em Lino, coisa que acabou por se transformar em verdadeira arrelia. Foi para acabar com esse constante constrangimento que optei por assumir a definitiva condição de “Filho do Manuel do Serafim”, esse porto seguro. Por um lado simplificava e por outro percebia que isso me valorizava, fazia de mim gente aos olhos dos “mais grandes”. Foi o que pude confirmar no dia em que de visita à Feira de Março, em Aveiro, me perdi.
Rodavam os carroceis sonoros e luminosos, borbulhava o óleo onde ganhavam formas as farturas, espalhando um cheiro doce pelo ar. As cores, as músicas e os odores e a correria das gentes saltando de diversão em diversão, ou aboletando-se nas barracas de comes e bebes constituíam um espetáculo de imparável sedução. Perdi-me pois, de tão atento às novidades, de tão curioso. Por causa do rodopio de cheiros e sons, do saltitar dos cavalinhos nos carroceis me esqueci da mão familiar e avancei sem perceber que me afastava. Afinal só queria aproveitar uma nesga para espreitar o que se escondia por detrás das paredes pintadas com bruxas e Dráculas onde rolava o comboio fantasma. Caminhei chamado por uma voz convidando “o estimável público para uma viagem ao susto.”
Pumba! Foi um choque frontal, tal o impacto quando dei por mim a olhar em redor sem descobrir qualquer rosto familiar. Por um breve instante pararam os carroceis, silencioso ficou o comboio fantasma e tudo o que existe no universo se esvaiu num oceano de incredibilidade. Corri sem sentido. Virei à esquerda e, sem parar em frente do Poço da Morte, fui na direção das luzes anunciando Farturas. Ali estanquei, sem forças para fazer andar as pernas. Os olhos fixando as filas das lâmpadas brancas e amarelas brilhando, brilhando, brilhando sem parar. Não precisei de muito tempo para confirmar as minhas suspeitas, estava irremediavelmente perdido.
Tremiam as pernas, pulava o coração. O fio de uma lágrima bordejava-me os olhos e o rosto mostrava uma tão óbvia expressão de pânico que um senhor que por ali passava me interpelou:
“Estás perdido?
Acenei que sim.
“Onde estão os teus pais?”
Não sabia. Mas ganhando um novo alento logo me expliquei sem deixar margem para qualquer dúvida, “Sou filho do Manuel do Serafim. O senhor leva-me à casa do portão grande?”
Dera a informação necessária e fundamental. O homem colocou a mão direita sobre o meu ombro, era uma mão larga agarrando-me como uma pinça, e conduziu-me até à cabine de som onde um senhor gordo, muito encarniçado, interrompeu a programação habitual para fazer o anúncio que se espalhou pelos altifalantes do recinto, “Perdeu-se um menino que diz ser filho do Manuel do Serafim. Espera que o venham buscar à cabine de som.”
Não precisei de esperar muito para reencontrar a família e encerrar tão assustadora experiência. Depois dos abraços e das lágrimas incontidas só tinha um desejo, uma única vontade, voltar para a “casa do portão grande.”
Naquele tempo existiam dois mundos separados por um portão de ferro. A fronteira física era pequena mas aquelas duas portas fechadas sobre si mesmas podiam ser montanhas intransponíveis. Daí o portão me parecer gigantesco apesar de, na realidade, ter um porte modesto. Tudo o que eu conhecia, o meu mundo, o meu território, ficava portão adentro. Lá fora vivia o desconhecido e uma série de vizinhos com quem partilhávamos a rua e a vida.
A rua era de terra batida.  No inverno enchia-se de poças de água, no verão ondulava de pó. Os rodados das carroças e carros de bois ajudavam a formar os bordos e o fundo dos pequenos lagos castanhos pontuando o caminho em tempo de chuvas. Caminhar, ou andar de bicicleta, era uma brincadeira para mim e um desafio para quem pretendesse não molhar os pés ou os rodados.
Havia mais mulheres do que homens e eu era a única criança. As mulheres mais velhas vestiam de preto dos pés à cabeça. Usavam lenço a cobrir os cabelos e cheiravam a fumo e a panelas. A Rosa do Pardal cheirava ainda a mijo. Julgo que nunca terá tomado um banho completo em toda a sua vida, o que se compreende pois ainda não havia casas de banho ou água corrente. As necessidades faziam-se numa retrete estrategicamente situada nos fundos, depois da pocilga e do galinheiro. Mas a  Rosa do Pardal era conhecida por apenas usar a retrete para as urgências sólidas. Quando se tratava de aliviar a bexiga, fazia-o em qualquer canto ou valeta. Abria bem as pernas lá por debaixo da rodada saia preta, inclinava os tamancos para o lado de fora e libertava-se sem mais demora ou trabalho.
Nos dois lados da rua havia sete casas, o resto era campo. Do nosso lado, colando adega com adega ficava a casa do Ti Pedro e da Ti Glória, os meus diletos vizinhos que, à falta de netos e com o filho emigrado na Venezuela, de onde não chegavam notícias, me apaparicavam com pipocas. Logo depois, formando um pequeno gaveto, havia uma casa mais pobre, de adobo sem reboco. Ali vivia Maria Peralta uma mulher marcada com o ferrete de adúltera porque, em sinal de desafio, cometera o gravíssimo pecado de parir três filhos que nunca souberam o nome do pai. Talvez por ter pisado os terrenos do demo tivesse adquirido uma sabedoria tão especial, tão rara, uma força tão especial que até era capaz de espantar o mau-olhado e enfrentar forças maléficas. Uns chamavam-lhe feiticeira, outros, bruxa.

As casas do outro lado da rua tinham as frentes viradas a sul. À esquerda ficava a casa e a oficina do Manuel da Barroca, o ferreiro. Em frente viviam a Ti Palmira com a irmã, a Louca que tinha uma filha, a Vitalina. Eram duas mulheres de pouca sorte, uma por doença e outra por ter sido desonrada por um rapaz que depois a deixou, condenando-a ao celibato.
Depois de uma casa da palha, mais recuada, surgia a casa da Rosa do Pardal, uma viuva que partilhava a existência com pintos, patos, galinhas e gatos, muitos gatos. Fechando a minha área de influência, estabelecendo uma nova fronteira para um terceiro mundo ficava a casa dos meus avós, Maria e Serafim. Também tinha um portão grande, mas este era de madeira. e estava emoldurado por cantaria que no arco superior tinha esculpida uma data, 1916.
O avô Serafim foi o meu primeiro companheiro, o meu primeiro amigo. E nem poderia ter sido de outra forma porque ele era o único com tempo para isso. Ao contrário de todos os outros, principalmente dos meus pais que andavam sempre atarefados correndo de afazer em afazer, o avô Serafim, que caminhava apoiado numa bengala, passava muito tempo sentado. Não era grande falador mas a sua presença, o seu olhar, umas vezes perdido outras fixando-me enternecidamente, bastavam-me para companhia. Eu ia inventando brincadeias com paus, pedras e o que demais houvesse à mão de semear. Às vezes fingia de avô e punha-me a caminhar apoiado numa bengala de fazer de conta. E ele ria-se.
Tinha bigode como a maioria dos homens do seu tempo. Toda a vida foi agricultor, labutando de sol a sol em meia duzia de pequenos terrenos onde produziu  vinho, batatas, milho e o demais necessário para alimentar a família. Sabia ler e tinha um pequeno escritório na frente da casa, antes da adega, onde guardava papéis, livros e documentos.  No fundo da gaveta da secretária andavam perdidas algumas moedas do tempo dos reis.
“Isso não vale nada”, comentava ao ver o meu interesse na esfinge de. D. Luís e D. Carlos. Nem as moedas tinham valor, por isso estavam abandonadas numa gaveta, nem a monarquia era regime admirado. Bem pelo contrário, aquela era uma casa de republicanos. No alto da estante do escritório, Serafim Simões da Costa exibia com orgulho o busto verde rubro da República. E ao lado a esfinge de Eça de Queiroz.

Frequentava a terceira classe quando uma estranha doença começou a reter o meu avô no leito. No início não me preocupei. A ter em conta a minha experiência acreditava que tudo se resolveria tomando comprimidos ou xaropes, experiência que podia ser mais aterradora do que a picada de uma agulha. Odiava xaropes!
Fui multiplicando as viagens pelo carreiro da missa, a caminho da escola, depois entrei para o ensino secundário sem haver notícias de melhoras. Até que numa segunda-feira, dia 3 de março de 1967, me disseram que não ia às aulas, mas para casa do meu primo Luís, em Aveiro. Defendiam-me da dor, protegiam-me do trauma de uma experiência fúnebre.
Não foi assim que o entendi. Provavelmente porque era mais fácil alimentar a revolta por me tomarem por fraco, do que enfrentar a dor. Senti-me enganado e à tristeza juntou-se uma profunda desilusão. Perante os meus protestos e perguntas insistentes os meus pais falaram-me da multidão que se juntou para a cerimónia fúnebre, descreveram-me a emoção, o respeito de toda aquela gente a caminhar em duas filas paralelas enquanto a banda filarmónica marcava o compasso. Muitos levavam ramos de flores, muitas flores.



Os meus pais nunca me falaram da existência de um deus capaz de distribuir os mortos pelo céu, inferno ou purgatório. Nunca admitiram a existência de um senhor, poderoso e omnipresente, a dirigir os destinos do universo. Nunca veneraram santos ou cruzes. Explicaram-me, simplesmente, que tal como as plantas e os outros animais cumprimos um ciclo de vida que se renova e multiplica com o nascer de cada nova geração. Cada um de nós é importante, quando não mesmo decisivo, porque é um elo essencial no prolongar de uma cadeia  de vidas sucessivas. E de mortes.
Com eles aprendi o significado, a importância e a beleza dos cemitérios. Ensinaram-me a respeitar os mortos, os verdadeiros construtores do nosso mundo, e a olhar com carinho as suas campas sem mistério. Não precisaram de palavras, foi com gestos simples que me explicaram que misteriosa não é a morte, mas a vida.


Belino Costa

1 comentário:

  1. Luiz Gala19:00

    Parabéns pelo excelente artigo.
    Ass. Luiz Gala (Bisneto do Ti Pedro e Ti Glória)

    ResponderEliminar