(Passando dos factos de uma notícia de jornal para a ficção. Ficção?)
Apressava-se o fim de tarde. Era domingo. Um homem de existência anónima e baixa condição social rodava despreocupadamente instalado em cima do seu motociclo. Ia de regresso a casa quando, à saída da Palhaça, inesperadamente um guarda da GNR o mandou parar.
O gesto autoritário do GNR surpreendeu de tal forma o quase sexagenário condutor do veiculo de ruas rodas, que só uma travagem, tão aflita quanto trapalhona, evitou o atropelamento do distinto militar que ainda se afastou, temendo pelo desastre.
– Desculpe ó senhor guarda…sabe não estou habituado a estas surpresas…então o que deseja? – Perguntou o homem que suava no esforço de manter o motociclo direito. E em pé. A máquina parecia querer fugir-lhe das mãos.
O guarda, um homem novo, olhou o motociclista, uma figura caricata com um capacete laranja a abanar em cima da cabeça, e fez cara séria. Ao invés sorria o cidadão, incapaz de perceber o que se avizinhava, essa desgraça. E quanto mais exibia o riso nervoso, mais espalhava um intenso odor a tintol.
– Encoste aí a motorizada. Vai fazer o teste de álcool! – Ordenou o militar, já devidamente acolitado.
– Mas um teste para quê se eu confesso tudo! – Declarou o homem numa inequívoca demonstração de inocência. Não era pessoa para mentir, nem via qualquer mal no convívio com os amigos. Um vinhito ao domingo, que é dia do Senhor, é coisa quase obrigatória, é mesmo uma necessidade, até na própria missa.
Desta feita o militar sorriu, mas logo endireitou o rosto implacável dizendo:
– Vai fazer o teste!
– Ó senhor guarda, o senhor não está a compreender… – Insistiu o atarantado motociclista no esforço inglório de explicar as variadas e boas razões que levam um cidadão, marcado por uma vida dura de trabalho no campo, a esfregar a alma com uma daquelas pomadas de uva que só alguns, os mais especiais, ainda são capazes de fazer. O homem queria reivindicar o direito à sua bebedeira dominical, um direito inalienável, pessoal e intransmissível. Não tinha dinheiro nem cultura, não tinha carro nem carta de condução, mas tinha o suficiente para poder pagar uns copitos aos amigos. Tudo normal, portanto.
O militar não era da mesma opinião pelo que, a contra gosto, lá se viu obrigado a soprar no balão, coisa que lhe pareceu mais fácil do que tocar pífaro. Soprou com raiva, como força e com verdade. Não estava ali para enganar ninguém.
– O senhor acusa uma taxa de alcoolemia de 1,59 gramas. – Anunciou o militar, usando uma linguagem incompreensível. E foi preciso algum esforço policial para o homem compreender que estava metido numa grande alhada. Tão grande que já não o deixavam voltar a conduzir a motorizada e prometiam levá-lo para o Posto, a fim de realizarem um novo teste, ou um contra teste ou qualquer coisa parecida. Foi aí que o motociclista, que só tinha pressa de chegar a casa, deitou as mãos ao céu.
– Vocês não me façam isso que eu já devia estar em casa. A esta hora a minha patroa já tem a ceia a sair da panela. Olhem que ela mata-me!
Mas aqueles guardas nem pareciam gente, tão direitos, tão sérios, tão educados e ainda por cima a falarem como se fossem doutores ou homens de leis. Bem argumentou, bem explicou que não tinha feito nada de mais. Não havia razão de ser tratado como um bandido…Ele que não era homem de arranjar problemas a ninguém.
– A ninguém, está a ver ó senhor guarda! Deixe lá isso, estou tão perto de casa…
Repetiu argumentos, mostrou no rosto um desespero tão verdadeiro quanto os calos que exibia nas mãos, invocou até os cabelos brancos, tudo sem sucesso. Os homens da GNR estavam determinados e enfiaram-no no carro, tal e qual se faz a um malfeitor. Era já noite.
Foi no súbito aconchego do automóvel policial, naquela quase intimidade, ainda não tinham chegado ao Sobreiro, que o homem tentou resolver a coisa da melhor maneira para todas as partes. Ainda que no seu íntimo sentisse bem a humilhação e a injustiça.
– Ó senhor guarda não me faça mal que eu não fiz mal a ninguém. E lá por ter bebido uns canecos também não é por aí que dou prejuízo. Vá lá! Pare aí o carro, deixe-me sair que eu dou a todos um saquinho de batatas, mas do que há de melhor! Batatas novas, plantadas e criadas por mim. Um mimo, pode crer que não há coisa assim em Portugal inteiro. Portugal? Qual Portugal, qual quê!? Nem na China, quanto mais!
Aquele polícia era de uma geração que, provavelmente, já só gosta de batatas fritas e em pacote, porque lhe respondeu com desdém, quase em chacota. Não desistiu, acreditando que não seria aquele jovem guarda, tão longe de conhecer a importância da batata nova, a levar a melhor. Não gostava de batatas, mas… mas quem é que não gosta de dinheiro?!
Tossiu só para fingir um disfarce e levou a mão ao bolso interior onde guardava o carcanhol. Lá no fundo, ao canto, dobradas em quatro, tacteou as duas notas de 20 Euros, uns oito mil escudos em dinheiro antigo, e pegando em tal fortuna ofereceu-a ao guarda que com ele viajava no banco traseiro.
– Ó homem, você sabe o que está a fazer? – Perguntou o guarda engrossando a voz. E o homem respondeu com candura e com inocência:
– É para vocês beberem umas cervejinhas… Como não gostam de batatas…
O motociclista que só tinha pressa de chegar a casa foi detido e presente ao juiz no dia seguinte, levando no alforge dois delitos: Condução sob o efeito do álcool e tentativa de corrupção.
O motociclista que só tinha pressa de chegar a casa deitou-se inocente e acordou criminoso. Às vezes basta juntar uma boa tarde de domingo com um saco de batatas para que a vida de um ser humano abane e se transforme. Às vezes há dias assim...tramados!
Belino Costa
Às vezes o nosso mundo cheio dr regras e obrigações é um local totalitário. Esta é uma GRANDE história. Parabéns
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