No dia 25 de Abril de 1974 acordei sem suspeitar que a minha vida
mudara. Só quando cheguei ao liceu, na expectativa de mais um dia de aulas,
recebi a notícia de que estava em marcha um golpe de estado. Não sabíamos ao
certo o que se passava, corriam muitos boatos. Crescia um estranho nervosismo
que se espalhava pela cidade, caldeado de incertezas mas dominado pela alegria
de quem acreditava no fim da ditadura.
Foi crescendo o júbilo com o passar das horas e ao fim da tarde
andámos pelas ruas aos abraços, bêbados da mais inebriante alegria. A ideia de
viver numa sociedade livre e democrática, a ideia da liberdade, coisa que nunca
antes havia experimentado, não era feita de palavras, mas de um gosto doce, de
uma excitação, de uma expectativa, de uma crença num futuro radioso. Estava
prestes a nascer um novo país, uma nova República, desta vez sem guerra,
polícia politica, bufos, delitos de opinião, censura e partido único.
Vivíamos um estranho sentimento de plenitude, de felicidade. Reinava a
calma e a alegria. Renascíamos.
Escrevi então o texto ”Tu, Povo”, muito ao estilo panfletário da
época, evado de inocência e idealismo, que é o retrato da esperança e das
expectativas de um jovem prestes a alcançar a maioridade.
Tu,Povo[1]
Tu Povo, já podes escrever a palavra LIBERDADE. De cada esquina, de cada conversa já desapareceu o espectro da PIDE/DGS. Tem de surgir agora o diálogo.
Tu Povo, já podes exigir que não hipotequem o país ao capitalismo estrangeiro sem seres algemado.
Tu Povo, já podes exigir o fim dos monopólios e uma maior distribuição da riqueza sem seres torturado.
Tu Povo, já podes exigir uma participação activa na construção do futuro, que é teu, sem seres amordaçado.
Tu Povo, já podes exigir o fim da guerra colonial, onde teus irmão lutam pela independência e liberdade de sua pátria.
(…)
Tu povo, já não necessitarás de lutar pelo teu pão em terra alheia.
Tu Povo, és a maior riqueza do país. Compete-te escolher o caminho do futuro. Depois de o escolheres constrói-o com a tua força e o teu suor, mas não permitas que vivam à custa do teu sacrifício, das tuas rugas, nem que a repressão caia novamente sobre ti.
Está vigilante, a reacção espreita e dos escombros do fascismo constrói a Paz, a Fraternidade e o Amor. (…)
Só depois de uma melhor distribuição das riquezas poderás gritar bem alto a palavra LIBERDADE.
A revolução do 25 de Abril de 1974 representou também uma oportunidade
tão inesperada quanto saborosa, um ano sem aulas, um ano em Bustos, a minha
terra, essa paixão.
Dado o terramoto politico gerado com o fim da ditadura e a consequente
instabilidade revolucionária, foi decidido pelo Governo Provisório que os
candidatos à universidade cumpririam um ano de “serviço cívico” e só depois
retomariam os estudos. Regressei a casa para umas longas férias escolares.
Também em Bustos se vivia a excitação revolucionária, melhor dizendo,
a calmaria revolucionária, porque todos continuaram com as suas rotinas, como
se nada tivesse acontecido. Os grandes debates ocorriam no café, depois da bica
e do jornal. Umas vezes no Café Central, outras no Tic-Tac, os confrontas
verbais podiam originar alguma exaltação, mas nada que fosse comparável às
discussões geradas por causa dos jogos de cartas ou de dominó.
Uma semana depois da madrugada revolucionária chegavam a Bustos
panfletos convocando a população do concelho para uma “Vigorosa manifestação!
Em apoio ao glorioso movimento das Forças Armadas que acabou com o regime fascista em Portugal. Comparece
domingo, 5 do corrente, pelas 18 horas, frente aos Paços do Concelho.”
Os panfletos eram atirados de um carro com ruidosos auto-falantes,
convocando o povo para a manifestação/reunião onde seria eleita uma Comissão
Administrativa para gerir o município de acordo com a legitimidade revolucionária.[2]
Entretanto, nos Estados Unidos da América, o emigrante bustuense,
Hilário Simões da Costa[3],
com 67 anos, via chegado o momento para regressar a Portugal. Depois de uma
vida de trabalho na “terra da liberdade”, chegara o momento do retorno. E uma
razão suplementar aumentou a pressa quando pela voz do Dr. Santos Pato, da
Mamarrosa, chegou o desafio de fundarem um jornal. Esse era o grande sonho de
Hilário Costa, uma ambição que apenas tinha aflorado quando, em New Rochelle,
no ano de 1969, editara o primeiro e único número do jornal “Farol da
Liberdade”.
Tudo se passou tão rapidamente que, na mesma página onde noticiava a
chegada a Bustos do emigrante vindo dos Estados Unidos da América, o
correspondente do “Jornal da Bairrada”[4]
escrevia também: ”A freguesia faz o seu caminho para uma sã democracia,
tendo-se feito uma primeira reunião, que nomeou a comissão que representará a
freguesia.”
Corria o dia 24 de Maio de 1974 quando o povo de Bustos se reuniu em
assembleia no salão do café Primor, ao Sobreiro, para eleger um novo executivo
para junta de freguesia. Havia que fazer valer a legitimidade revolucionária e
substituir os representantes do regime deposto, o que aconteceu sem qualquer
violência ou “ajuste de contas”.
Encheu-se de gente o salão de festas do Café Primor e a metodologia
foi facilmente acordada, votava-se de dedo no ar. Um pouco mais difícil foi
encontrar candidatos. O nome de Amaral Simões dos Reis Pedreiras surgiu de
forma espontânea e quase unânime, pois se aquele era o momento de celebrar a
democracia impunha-se eleger alguém que por causa dela tivesse sofrido, que por
ela tivesse lutado. Era o mais justo.
Apesar de todas as insistências, de muitos apelos o Amaral manteve-se
firme, recusando a presidência. Que não, que havia outros, bem mais capazes e
preparados e que também tinham lutado contra a ditadura. Quando muito, por amor
à terra e para não ser ingrato, aceitava um lugar mais modesto. O nome de
Hilário Simões da Costa é então alvitrado como o de alguém com as necessárias
condições para exercer o cargo. O recém-chegado, confrontado com tal desafio,
ainda hesitou, mas rapidamente percebeu que não havia espaço para uma segunda
recusa. Em nome dos ideais republicanas, do amor a Bustos tinha de
aceitar.
A lista, composta por Hilário Simões da Costa (presidente), Jó
Ferreira Duarte (secretário) e Amaral Simões dos Reis Pedreiras (tesoureiro),
acabou eleita por unanimidade e aclamação. A nova comissão administrativa da
junta de freguesia de Bustos tomou posse no dia 7 de Julho e cinco dias depois
surgia o “Bairrada Livre - quinzenário democrático, defensor da região”[5]
dirigido por Manuel dos Santos Pato (dr) e Hilário Simões da Costa.
Pelo meu lado não só colaborei com orgulho no “Bairrada Livre” como
promovi a abertura de uma sede do Movimento Democrático Português (MDP/CDE) bem
no centro de Bustos. O meu tio, Augusto Simões da Costa[6],
tinha a loja desocupada desde que o Manuel dos Moras mudara o comércio de
fazendas para edifício próprio. Falei-lhe da minha intensão e pedi-lhe o
empréstimo do edifício. Sempre sorridente e bem-disposto deu-me uma palmada no
ombro dizendo, “Rapaz, vai em frente!”.
E fui. Pintei muros, colei cartazes, dinamizei um núcleo do MDP/CDE[7]
que chegou a ter 89 inscritos mas que, formalmente, nunca se chegou a integrar
em nenhuma estrutura oficial do Movimento. A exemplo da aldeia gaulesa de
Asterix, eramos um grupo de oposicionistas à ditadura que, depois dela,
mantinha a unidade. Em boa verdade esta era essencialmente afetiva, ainda que
continuássemos a acreditar no princípio mais marcante de toda a revolução, ”o
povo unido jamais será vencido.”
A experiência durou pouco mais de um ano. Foi-se diluindo com a
natural integração nos vários partidos políticos que surgiram.
Foram muitas as palavras de ordem que então andaram de boca em boca.
Em casa de meus pais, na Póvoa de Bustos, um novo slogan passou a marcar os meus dias. Diziam-me eles, “é trabalhar
que se ganha o pão de cada dia”. E estando eu sem atividade escolar não tinha
outro remédio, passei a ser mais um a colaborar na faina diária, nem sempre com
grande gosto, confesso.
Durante um ano fui agricultor, comerciante e maquinista[8]
até que em plena vindima de 1975 expliquei que tinha de partir para Lisboa onde
me inscrevera nos cursos de Jornalismo, na Escola Superior de Meios de
Comunicação Social e de Direito, na Universidade de Lisboa. O meu pai não
barafustou. “É a tua vida” reconheceu a caminho da estação do caminho-de-ferro.
Deu-me dinheiro, vinte contos[9],
e depois de um abraço de despedida, sem tempo para esperar o comboio,
acrescentou: “Tem juízo e muita sorte!”
Parti, sem
nunca deixar a minha terra, a minha gente.
Belino Costa
[1]
“Independência D’Águeda”, nº2186, 11/5/1974
[2]
Nas semanas seguintes ao 25 de Abril sucederam-se na região vários eventos
políticos, para além dos já mencionados. Aqui fica o registo de alguns, como a
Manifestação do 1º de maio, em Aveiro; o comício de apoio ao Movimento das
Forças Armadas e à Junta de Salvação Nacional que teve lugar na Casa do Povo da
Palhaça (11 de maio); o comício e romagem aos mártires pela liberdade, em
Aveiro (18 de maio); a sessão de debate e esclarecimento politica onde se falou
sobre o que foi o fascismo e se debateu o futuro da agricultura, no salão do
Café Primor, no Sobreiro (16 de junho); o comício sobre o “momento agrícola”
promovido pelas Câmaras de Oliveira do Bairro, Anadia e Mealhada que teve lugar
no estádio do Anadia (30 de junho).
[3]
Hilário Simões da Costa (1907-1994), natural de Bustos, filho de Domingos
Simões da Costa e de Maria dos Santos da Silva, casou com Aldina Mota e Gala
(1925-2008). Filhos: Milton Simões da Costa e Hilário Simões da Costa.
[4] 1 de Junho de 1974, pág. 7. O correspondente
do jornal em Bustos era o Padre António Vidal.
[5]
O “Bairrada Livre” com redação e administração em Bustos, tinha como diretores
Manuel dos Santos Pato (dr.) e Hilário Simões da Costa. Publicou-se entre 12 de
Julho de 1974 e 6 de Julho de 1975.O fim da publicação deveu-se, em grande medida
, à morte súbita do Dr. Santos Pato como explicou Hilário Costa em “Memórias de
um Bustoense”:”Mas com o falecimento do Dr. Santos Pato e como o “Bairrada
Livre” era um jornal democrático e os “democratas” se dividiram em diversos
partidos, não havia razão para eu continuar com a sua publicação, a não ser
torna-lo um jornal independente. A minha decisão foi, portanto, suspender a sua
publicação, tendo-me magoado bastante, pois vivi para ele com grande afecto,
embora com muito trabalho e despesas durante um ano.”
[6] Augusto
Simões da Costa (1920-2013), filho de Serafim Simões da Costa e Maria dos
Santos da Silva, da Póvoa de Bustos.
[7] Nas
eleições de Abril de 1975, em Bustos, MDP/CDE teve 80 votos.
[8] Nome
dado ao homem que controla o alambique durante a queima do bagaço.
[9] Cem
euros.
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