No dia 24 de Abril de 1974 estava em Aveiro. Frequentava o sétimo ano,
no Liceu Nacional, preparando-me para concluir o curso dos liceus e ingressar
na faculdade. Temia pelo meu futuro apesar de saber que só depois de concluir
os estudos seria obrigado a ir “servir para o ultramar”. A simples ideia de ir
participar numa guerra sem sentido e “servir” um regime despótico revoltava-me.
Estava determinado a recusar tal destino, apesar de saber que isso implicava
partir a “salto”. Atravessar a fronteira a coberto da noite para ir percorrer
os incertos caminhos da emigração e do exilio. Ao tempo, falávamos disso com
humor, numa linguagem capaz de ludibriar censores e policias. Transformámos a
denúncia política em anedota: “Sabes porque é que um gafanhoto é tão parecido
com um português? É que os gafanhotos também dão o salto!”
UM ANO ANTES
A expectativa de ser forçado a ir para guerra era um estigma. Tinha
medo, sim. Também por isso era cada vez mais forte, mais urgente, mais vital a
necessidade de ser livre. Precisava de colaborar, fazer o que pudesse para
derrubar o regime. Usando o que tinha à mão, palavras, comecei, em dezembro de
1973, a escrever no “Independência de Águeda” onde assinei uma coluna intitulada
“Gente do Meu País”.
Felizmente estava em Aveiro, a cidade do último grande encontro das
forças oposicionistas ao regime, antes da revolução. Marcelo Caetano permitira
a realização do Terceiro Congresso da Oposição Democrática. De 4 a 8 de Abril de
1973, o cinema Avenida recebeu milhares de congressistas vindos de todo o país,
discutindo temas como: Desenvolvimento Económico e Social; Organização do
Estado e Direitos do Homem; Educação Cultura e Juventude; Desenvolvimento
Regional e Administração Local; Situação e Perspectivas Políticas nos Planos
Nacionais e Internacional; Urbanismo e Habitação; Segurança Social e Saúde.
Durante quatro dias assisti a debates intensos, a comícios acalorados,
cruzei-me com personagens admiráveis. Era um dos miúdos que dava apoio aos
serviços do congresso, fazendo de tudo um pouco, desde a distribuição de
comunicados à venda de lembranças como cinzeiros, postais e esferográficas.
Senti-me útil, juntava-me a outros militando pela liberdade. Ali sedimentei o
essencial da minha formação política, da determinação em me empenhar na única
luta que poderia alterar o meu futuro. Ali decorei o princípio que deveria
nortear a construção de uma nova sociedade: “Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos.”[i]
Ver a coragem o empenho dos congressistas foi inspirador, mas o
momento mais marcante estava guardado para o último dia, na hora da anunciada
romagem ao túmulo de Mário Sacramento.
A notícia, conhecida na véspera, de que a romagem fora proibida não
bastou para parar toda a movimentação de “oposicionistas” rumo a Aveiro.
Alguns, chegados de véspera, acamparam nos terrenos onde hoje existe o Fórum,
outros procuraram abrigo junto dos congressistas. Nessa noite, na sua casa da
Praça do Peixe, António Máximo albergou onze jovens vindos de Lisboa. Quatro
ficaram no chão do quarto que eu ali tinha de aluguer, e os restantes
acomodaram-se na sala.
Pelas 8h30m do dia seguinte juntámo-nos em frente ao Hotel Arcada, nas
pontes. Chegavam notícias preocupantes. O cemitério e o edifício do Governo
Civil estavam cercados por polícias e cães, os autocarros e comboios que se
dirigiam para Aveiro tinham sido bloqueados, impedidos de chegar à cidade.
Estávamos cercados e, não muito longe, as carrinhas da polícia de choque (contei
12) fervilhavam com sujeitos de capacete e bastão, tão agitados quanto os pastores
alemães que os acompanhavam.
Foi neste ambiente de incerteza e tensão, numa manhã que me pareceu
gelada, que se começou a juntar gente em volta das pontes e no início da avenida
Dr. Lourenço Peixinho. Não havia chefes, nem instruções ou estratégia. Foi-se
juntando o povo até que um grupo, sem aviso prévio, deixou os passeios, ocupou
o centro da estrada. Tanto bastou para todos se juntarem em manifestação.
Éramos cerca de cinco mil ocupando os dois lados da avenida, demos os braços iniciando
à caminhada. Lá na frente ergue-se um pano dizendo: “A Juventude diz não à
Guerra Colonial”. Ouvia-se um clamor de vozes, uma estranha vibração atravessa
o ar, a emoção mostrava-se em cada rosto, em cada braço cruzado. Subitamente, por
entre o alarido dos que marcham sobressai uma voz, “Heróis do mar…”, e logo uma
outra alma surge, um novo ânimo e, em uníssono, cantamos o hino nacional.
Cresce a emoção, com mais força se fincam os braços, se soltam as
gargantas: “Amnistia! Amnistia! Amnistia!”, “Fim à Guerra Colonial!”, “Fora a
PIDE!”.
Não tínhamos avançado mais do que uma centena de metros quando o
alvoroço nos empurra pelas costas. Instala-se o pânico perante o assalto da
polícia de choque. Atacam pela retaguarda de bastão em punho. Levam pela frente
a multidão que corre e se atropela, fugindo da fúria dos bastões. Tropeçam os
mais desafortunados para gáudio dos polícias, que malham, malham. Ladram os
cães, também eles excitados.
Levado pelos empurrões desordenados da gente em fuga acabo entalado,
no meio de outros, contra a parede do Banco de Portugal. Outro breve instante,
porque a muralha de gente que me protege logo se desfaz. Vejo-me, finalmente,
com caminho aberto para a fuga. É então que me dou conta do susto. Tenho pela
frente uma besta de capacete metálico que levanta o cassetete em gesto de
ataque. Não o olho de frente porque toda a minha atenção se concentra no
movimento do braço que ganha balanço e se abate com violência no ombro do
infeliz que se encontra a meu lado.
Juro que ouvi o assobio do bastão cortando o ar, tão perto ele passou
do meu ouvido. Não sei se terá sido o meu gingar de corpo ou se o polícia se
comoveu com o meu ar franzino, a verdade é que me livrei do pior. Aproveitando
a sorte, sem lhe dar hipóteses de corrigir o tiro, fintei o polícia abalando
dali com tal fogo no rabo que quando entrei no Café Avenida (qualquer porta
aberta servia de refúgio) só parei depois de embater contra uma mesa.
Nessa tarde o Congresso esteve à pinha e eu espantei-me com a
confiança daqueles homens e daquelas mulheres, tão seguros se mostravam quanto
a uma vitória certa. Especialmente porque o Congresso marcava o entendimento
das várias correntes ideológicas e politicas na oposição ao regime.
Estavam prometidas eleições
legislativas até ao fim do ano pelo que, num dos improvisados debates,
perguntei se a oposição democrática as pensava ganhar. Riram-se com tanta
ingenuidade. Explicaram-me que com censura prévia, sem liberdades cívicas e
tendo o governo o controle das listas de eleitores, assim como de todo o
processo eleitoral, era impossível ganhar. Mas justificava-se participar na
farsa, aproveitá-la para combater a ditadura e afirmar os valores da
democracia.
Foi o que fiz. Com as eleições marcadas para dia 28 de Outubro um novo
tempo de descoberta politica se abriu, pois passei a andar de comício em
comício, integrando a comitiva da CDE de Aveiro na dinamização de muitas das
sessões de esclarecimento que se fizeram um pouco por todo o distrito. A tarefa
dos mais novos era simples, montar a banca para a distribuição dos manifestos,
comunicados e demais panfletos, vender “materiais” e receber donativos.
Mas havia uma razão muito especial para me empenhar com redobrada
paixão na campanha. Entre os sete candidatos da oposição democrática pelo
círculo de Aveiro encontrava-se um conterrâneo e familiar, Amaral Simões dos
Reis Pedreiras. Era eu,
a minha família e a minha aldeia, juntos na luta pela liberdade. Aos dezassete
anos tudo se sente de forma especialmente intensa e eu empolguei-me, senti-me
parte de uma força capaz de transformar o país. Lia-se no desdobrável que
apresentava os candidatos:
AMARAL
SIMÕES DOS REIS PEDREIRAS. Agricultor. Natural de Bustos, concelho de Oliveira
do Bairro, nasceu em 1927. Muito considerado na região bairradina, participou
em todas as campanhas eleitorais e movimentos cívicos levados a efeito no
distrito, designadamente em Aveiro. Apoiou as candidaturas à Presidência da
República de Norton de Matos, Rui Luís Gomes, Arlindo Vicente e Humberto
Delgado. Tomou parte activa nos três Congressos de Aveiro, tendo, no último,
pertencido à Comissão Distrital.
Até na propagando oposicionista havia o dedo da censura pelo que não
se dizia o mais importante, que o Amaral era um ex-prisioneiro político,
torturado até perder a consciência. Nem se dizia que antes dele já o pai,
Manuel Reis Pedreiras,
fora preso sob a acusação de distribuir propaganda subversiva.
O Amaral era um homem tímido, de poucas palavras. Confessou-me que só
por insistência desse grande amigo, Álvaro Seiça Neves, acedeu ser candidato,
apesar de saber que não tinha conhecimentos para tão importante missão.
Dizia-se, “um agricultor e mais nada”. Desvaloriza-se. Desvalorizava até as
sequelas físicas e psicológicas provocadas pela tortura, que nunca mais o
abandonaram. Aqui deixo o seu testemunho em entrevista concedida no ano de
2003.
TORTURADO ATÉ PERDER A CONSCIÊNCIA
- Qual é a primeira lembrança que tem da polícia
política do Estado Novo, a PIDE?
- Comecei a lidar com a PIDE no ano em que o meu pai foi preso.
Levaram-no para Coimbra em 1959 e eu ia lá visitá-lo todos os dias, até que ele
adoeceu. Levaram-no para o Hospital onde estava sempre acompanhado por um PIDE,
que era rendido de quatro em quatro horas. Eles não gostavam de me ver,
viravam-se para mim e diziam que me ia acontecer o mesmo. Não queriam que o
visitasse, mas eu nunca deixei de ir.
- O seu pai era Manuel Reis Pedreiras,
também da Póvoa. Bateram-lhe?
- Não, a ele não lhe bateram. Em jeito de gozo até lhe diziam que um dia
ele ainda havia de ser um dos deles ao que o meu pai, sem medo, respondia:” Só
se vocês mudarem para o MUD”, que era o movimento da oposição a Salazar. Ele
tinha sido preso porque o acusaram de ter distribuído propaganda política. E
era verdade! Esteve um mês nas mãos da PIDE, mas como estava doente acabaram
por o mandar para casa, diziam que ele estava arrumado. Ele veio para morrer
mas ainda resistiu até março.
- E no seu caso, como se deu a prisão?
- O Arsénio Mota um dia abordou-me no café e falámos sobre a situação
politica. Estava uma pessoa com ele e ele disse-me:” Quando este senhor vier
por aqui atende-o bem.” Disse-lhe que sim, pois se ele o pedia…
Passado um tempo passa por aqui um outro senhor, chamado José Guerreiro
Drago e dei-lhe dormida por duas ou três vezes. Quem ajuda não faz perguntas e
eu não sabia que ele era funcionário do Partido Comunista Português (PCP). Ora
ele lidava com um tal Ribeiro, de Aveiro, que a PIDE entretanto prendeu. Foi na
prisão, ao que sei com promessa de ser libertado, que esse Ribeiro denunciou o
Drago. Também o Drago foi preso e, já paranóico com tanta tortura, diz um nome,
Tita. A PIDE, que sabia que ele tinha estado em Bustos, pede informações para
cá e os informadores locais respondem que a Tita é a filha do Amaral Pedreiras.
- Mas Tita é um mero diminutivo, nem sequer é nome
próprio.
- Pouco interessou para o caso. Fui preso e o Pompeu João Domingos
também. Tiveram-me em Coimbra desde 25 de Junho até 31 de Agosto de 1966.
- Como foi tratado?
- No primeiro dia deram-me pancada. Disseram: ”Tens aqui papel e lápis,
só tens que escrever os nomes.” Como eu não escrevia batiam-me. No segundo dia
mudaram de estratégia passaram à tortura da estátua. Eu tinha de estar sempre
em pé, sem poder mudar de sítio ou fechar os olhos. E batiam-me quando lhes
respondia que eu não tinha nada para escrever. Estive cinco dias nesta tortura
de sono, mas a partir do terceiro dia e já não tinha força, nem consciência de
nada. Deixei mesmo de saber o que se passava à minha volta durante dois dias.
Não me lembro de nada, só daquilo que os meus colegas de cela mais tarde me
contaram. Saí em 31 de Agosto, depois de ter pago uma caução de vinte escudos
na Caixa Geral de Depósitos.
- Livrou-se deles.
- Não livrei nada. Eles vieram aqui a casa e baldearam tudo à procura de
“coisas”, a intimidação continuou e quatro meses depois, no primeiro de
Dezembro sou avisado que ia ser preso novamente.
- Podia ter fugido.
- Não fugi. Passados três dias recebo ordem para ir ao posto da GNR em
Bustos, já eu sabia para quê porque um amigo me tinha avisado. Fui lá e
disse-lhes: “Eu não fujo mas tenho umas coisas a tratar com o meu irmão Chico
(Humberto Pedreiras) por isso deixe-me ir tratar das minhas coisas que volto
mais tarde”. O Chefe Celso responde-me:” Você não diga nada mas foi a PIDE que
nos ligou. Vá lá tratar das suas coisas e volte quando puder”.
- E voltou?
- Voltei logo que tratei das coisas com o meu irmão. Às três horas
levaram-me para o Porto. Foi nos primeiros dias de Dezembro. Fiquei detido até
ir responder a Tribunal no dia 3 de Março de 1967, o dia em que fazia 40 anos.
Voltei ainda mais duas vezes a Tribunal acabando por ser absolvido, mas com
medidas de segurança por um período entre 6 meses e 3 anos.
- Isso significou o quê?
- Que estive mais 15 dias preso no Porto.
- Acabou aí?
- Ainda não, depois levaram-me para o forte de Peniche. Estive detido
dezanove meses e meio, já depois de ter sido absolvido. E quando saí fui
obrigado a assinar que não podia estar num grupo com mais de cinco pessoas e
ficava com a obrigação de me apresentar ao Presidente da Câmara todos os meses,
no primeiro dia útil de cada mês. Mais tarde passei a apresentar-me na GNR de
Bustos. Isso durou três anos…
- Três longos anos…
- Quando me libertaram fiz questão de ir levantar o dinheiro da caução
que tinha pago inicialmente, os tais vinte escudos. Pois cobraram-me dois por
cento por terem ficado com o meu dinheiro!
- E a vida em Peniche? Deve ter conhecido presos
famosos?
- Alguns, como o Varela Gomes e o Blanqui Teixeira. Quando cheguei estive
na cela disciplinar e depois passei para as salas com nove presos, onde fiquei
até vir embora.
- O mais espantoso, pelo menos para mim, é que o
Amaral não era um verdadeiro “agitador político”. Limitou-se a ajudar, a ser
solidário.
- Eu nem sabia que o Drago era do Partido Comunista. Ele pediu-me ajuda e
eu ajudei-o, mas cheguei a dizer-lhe para ele se afastar, que não me queria
comprometer.
- Mas comprometeu-se, chegou a ser candidato a
deputado pela oposição democrática nas “eleições” de 1973?
- Eu não queria, não tinha capacidade para isso. Foi a primeira vez em
que me meti em qualquer coisa política. E só aceitei porque mo pediu esse
grande amigo que era o Álvaro Seiça Neves.
- Esteve também para ser Presidente da Junta de
Freguesia de Bustos na sequência do 25 de Abril.
- É verdade, queriam que eu fosse o Presidente. Foi quando o povo se
juntou no café Primor e votou de dedo no ar. Insistiram muito comigo e não
aceitei, pelo que ficou o Hilário Costa como presidente. Mas não me livrei de
ficar como tesoureiro. E lá fomos eleitos os três, o Hilário presidente, eu
tesoureiro e o Jó Duarte secretário.
- Ocupou outros cargos?
- Nessa mesma altura também me propuseram para a Câmara mas disse que
não. Nunca fui homem dado a coisas do poder, nem nunca fui político.
- Mas integrou outras associações.
- Estive ligado à União Liberal de Bustos, ao futebol quando houve a
fusão dos Canecas e Gavetas e fiz parte do ABC, na fundação.
Belino Costa
(Continua)
Amaral
Simões dos Reis Pedreiras (1927-2011), filho de Manuel Reis Pedreiras, da
Póvoa, e Maria Augusta Simões Aires, da Azurveira, casou com Ditosa das Neves Mota, da Póvoa. Filhos:
Élio Neves Reis Pedreiras e Maria Augusta Neves Reis Pedreiras.
Manuel Reis Pedreiras (1894-1959), acusado de ter
distribuído propaganda política subversiva, esteve preso durante um mês nos
cárceres da polícia política, em Coimbra. De acordo com o depoimento do filho,
Amaral dos Reis Pedreiras, “ como estava doente acabaram por o mandar para
casa, diziam que ele estava arrumado. Ele veio para morrer.”
Poucos meses depois,
na edição de 6 de Junho de 1959, o jornal “República” destacava a morte do
“combatente cheio de optimismo e de fé nos princípios democráticos”. A notícia,
com foto, surge inserida numa reportagem de duas páginas e meia (texto e
publicidade) dedicada a Bustos, “o mais belo e progressivo aglomerado
populacional da Bairrada”: “O funeral do Sr. Manuel Reis Pedreiras, ocorrido,
em Bustos, no dia 16 de Março último, foi uma grandiosa manifestação de pesar,
tendo-se incorporado algumas centenas de pessoas de todas as camadas sociais
vindas de toda a parte do distrito de Aveiro e de Coimbra, amigas e admiradoras
do saudoso morto. É que Manuel Reis Pedreiras soube cativar amizades e
simpatias, tendo trilhado sempre o caminho da honra e do dever e mantido firme
o seu ideal republicano. Era um combatente cheio de optimismo e de fé nos
princípios democráticos. Socorria os pobres e estava presente em todas as
causas justas. Motivo porque a sua morte foi muito sentida.
Foi mais um grande cidadão e republicano que desapareceu, e, invocando a sua
memória, curvamo-nos respeitosamente.”