Crónica de
BELINO COSTA
Maria
dos Santos Silva, Manuel Simões da Costa (ao colo) Serafim Simões da Costa e
Augusto Simões da Costa
“De
quem és filho, meu menino?” Naquele tempo não me era reconhecida identidade própria
ou uma existência autónoma. Como ainda não era considerado uma pessoa
chamavam-me criança que, o mesmo era dizer, aspirante a ser gente. Aos adultos
pouco interessava o meu nome, essa irrelevância.
“De
quem és filho, meu menino?” A pergunta vinha lá do alto e o instinto
aconselhava-me a responder sem mostrar arrelia, “Sou filho do Manuel Costa”. A
ver se assim se resolvia a questão e me deixavam em paz, que é o mesmo que
dizer, se esqueciam da minha existência. Engano meu, na verdade tal resposta só
ajudava a multiplicar as dúvidas e as irritantes perguntas. Fiquei assim a
saber que Manuel Costa não era nome exclusivo. Havia outros, familiares ainda,
com a mesma designação, pelo que a minha resposta não permitia uma inequívoca
identificação.
Espantava-me
aquilo. Era confuso imaginar diferentes pessoas com o mesmo nome, vivendo perto
umas das outras. Pobre carteiro!
Vergado
perante a complexidade do mundo adulto, fixei o olhar nos sapatos. Foi quando
me inquietaram com nova interrogação, “E quem é o pai do teu pai, o senhor teu
avô?”
Como
se eu não soubesse que o pai do meu pai é meu avô! Apesar de ser tomado por
estúpido e só para evitar mais aborrecimentos, respondi sem tirar os olhos do
chão, “Serafim…”
Não
foi preciso acabar a frase porque, a avaliar pela reação, o único Serafim que havia
lá na terra era o meu avô. Só assim se explica a convicção com que o meu interlocutor
exclamou, “Ah! És filho do Manuel do Serafim!”
No
início com alguma indiferença e depois com algum entusiasmo compreendi que a
minha identidade se confundia com a do meu pai, da mesma forma que a dele se
confundia com a do meu avô.
A
partir de então passei a responder tendo em conta o laço geracional, “Sou o
filho do Manuel do Serafim”. Tanto bastava para me assegurar um lugar à mesa de
café, mas só no caso de sobrar alguma cadeira depois de todos os outros se
terem sentado. O que constituiu um admirável progresso.
Quando
chegou o tempo de ir para a escola e se começaram a interessar pelo meu nome
decidi manter a versão. E quando me perguntavam, “Como te chamas?” respondia, “Sou
filho do Manuel do Serafim”.
Não
havia nisso razão profunda ou filosofia infantil, dizia-o para poupar tempo e
explicações. Assim não me via constrangido a ter que soletrar o meu nome. Eu
dizia Belino e eles entendiam Avelino, Celino, Plino, e mais uma catrefada de
nomes acabados em Lino, coisa que acabou por se transformar em verdadeira
arrelia. Foi para acabar com esse constante constrangimento que optei por
assumir a definitiva condição de “Filho do Manuel do Serafim”, esse porto
seguro. Por um lado simplificava e por outro percebia que isso me valorizava, fazia
de mim gente aos olhos dos “mais grandes”. Foi o que pude confirmar no dia em
que de visita à Feira de Março, em Aveiro, me perdi.
Rodavam
os carroceis sonoros e luminosos, borbulhava o óleo onde ganhavam formas as
farturas, espalhando um cheiro doce pelo ar. As cores, as músicas e os odores e
a correria das gentes saltando de diversão em diversão, ou aboletando-se nas
barracas de comes e bebes constituíam um espetáculo de imparável sedução.
Perdi-me pois, de tão atento às novidades, de tão curioso. Por causa do rodopio
de cheiros e sons, do saltitar dos cavalinhos nos carroceis me esqueci da mão
familiar e avancei sem perceber que me afastava. Afinal só queria aproveitar
uma nesga para espreitar o que se escondia por detrás das paredes pintadas com
bruxas e Dráculas onde rolava o comboio fantasma. Caminhei chamado por uma voz
convidando “o estimável público para uma viagem ao susto.”
Pumba!
Foi um choque frontal, tal o impacto quando dei por mim a olhar em redor sem
descobrir qualquer rosto familiar. Por um breve instante pararam os carroceis,
silencioso ficou o comboio fantasma e tudo o que existe no universo se esvaiu
num oceano de incredibilidade. Corri sem sentido. Virei à esquerda e, sem parar
em frente do Poço da Morte, fui na direção das luzes anunciando Farturas. Ali estanquei,
sem forças para fazer andar as pernas. Os olhos fixando as filas das lâmpadas
brancas e amarelas brilhando, brilhando, brilhando sem parar. Não precisei de
muito tempo para confirmar as minhas suspeitas, estava irremediavelmente perdido.
Tremiam
as pernas, pulava o coração. O fio de uma lágrima bordejava-me os olhos e o
rosto mostrava uma tão óbvia expressão de pânico que um senhor que por ali
passava me interpelou:
“Estás
perdido?
Acenei
que sim.
“Onde
estão os teus pais?”
Não
sabia. Mas ganhando um novo alento logo me expliquei sem deixar margem para
qualquer dúvida, “Sou filho do Manuel do Serafim. O senhor leva-me à casa do
portão grande?”
Dera
a informação necessária e fundamental. O homem colocou a mão direita sobre o
meu ombro, era uma mão larga agarrando-me como uma pinça, e conduziu-me até à
cabine de som onde um senhor gordo, muito encarniçado, interrompeu a
programação habitual para fazer o anúncio que se espalhou pelos altifalantes do
recinto, “Perdeu-se um menino que diz ser filho do Manuel do Serafim. Espera
que o venham buscar à cabine de som.”
Não
precisei de esperar muito para reencontrar a família e encerrar tão assustadora
experiência. Depois dos abraços e das lágrimas incontidas só tinha um desejo,
uma única vontade, voltar para a “casa do portão grande.”
Naquele
tempo existiam dois mundos separados por um portão de ferro. A fronteira física
era pequena mas aquelas duas portas fechadas sobre si mesmas podiam ser
montanhas intransponíveis. Daí o portão me parecer gigantesco apesar de, na
realidade, ter um porte modesto. Tudo o que eu conhecia, o meu mundo, o meu
território, ficava portão adentro. Lá fora vivia o desconhecido e uma série de vizinhos
com quem partilhávamos a rua e a vida.
A
rua era de terra batida. No inverno
enchia-se de poças de água, no verão ondulava de pó. Os rodados das carroças e
carros de bois ajudavam a formar os bordos e o fundo dos pequenos lagos
castanhos pontuando o caminho em tempo de chuvas. Caminhar, ou andar de
bicicleta, era uma brincadeira para mim e um desafio para quem pretendesse não
molhar os pés ou os rodados.
Havia
mais mulheres do que homens e eu era a única criança. As mulheres mais velhas
vestiam de preto dos pés à cabeça. Usavam lenço a cobrir os cabelos e cheiravam
a fumo e a panelas. A Rosa do Pardal cheirava ainda a mijo. Julgo que nunca
terá tomado um banho completo em toda a sua vida, o que se compreende pois ainda
não havia casas de banho ou água corrente. As necessidades faziam-se numa retrete
estrategicamente situada nos fundos, depois da pocilga e do galinheiro. Mas
a Rosa do Pardal era conhecida por
apenas usar a retrete para as urgências sólidas. Quando se tratava de aliviar a
bexiga, fazia-o em qualquer canto ou valeta. Abria bem as pernas lá por debaixo
da rodada saia preta, inclinava os tamancos para o lado de fora e libertava-se
sem mais demora ou trabalho.
Nos
dois lados da rua havia sete casas, o resto era campo. Do nosso lado, colando
adega com adega ficava a casa do Ti Pedro e da Ti Glória, os meus diletos
vizinhos que, à falta de netos e com o filho emigrado na Venezuela, de onde não
chegavam notícias, me apaparicavam com pipocas. Logo depois, formando um
pequeno gaveto, havia uma casa mais pobre, de adobo sem reboco. Ali vivia Maria
Peralta uma mulher marcada com o ferrete de adúltera porque, em sinal de
desafio, cometera o gravíssimo pecado de parir três filhos que nunca souberam o
nome do pai. Talvez por ter pisado os terrenos do demo tivesse adquirido uma
sabedoria tão especial, tão rara, uma força tão especial que até era capaz de
espantar o mau-olhado e enfrentar forças maléficas. Uns chamavam-lhe
feiticeira, outros, bruxa.
As
casas do outro lado da rua tinham as frentes viradas a sul. À esquerda ficava a
casa e a oficina do Manuel da Barroca, o ferreiro. Em frente viviam a Ti
Palmira com a irmã, a Louca que tinha uma filha, a Vitalina. Eram duas mulheres
de pouca sorte, uma por doença e outra por ter sido desonrada por um rapaz que
depois a deixou, condenando-a ao celibato.
Depois
de uma casa da palha, mais recuada, surgia a casa da Rosa do Pardal, uma viuva
que partilhava a existência com pintos, patos, galinhas e gatos, muitos gatos. Fechando
a minha área de influência, estabelecendo uma nova fronteira para um terceiro
mundo ficava a casa dos meus avós, Maria e Serafim. Também tinha um portão
grande, mas este era de madeira. e estava emoldurado por cantaria que no arco superior
tinha esculpida uma data, 1916.
O
avô Serafim foi o meu primeiro companheiro, o meu primeiro amigo. E nem poderia
ter sido de outra forma porque ele era o único com tempo para isso. Ao contrário
de todos os outros, principalmente dos meus pais que andavam sempre atarefados
correndo de afazer em afazer, o avô Serafim, que caminhava apoiado numa bengala,
passava muito tempo sentado. Não era grande falador mas a sua presença, o seu
olhar, umas vezes perdido outras fixando-me enternecidamente, bastavam-me para
companhia. Eu ia inventando brincadeias com paus, pedras e o que demais houvesse
à mão de semear. Às vezes fingia de avô e punha-me a caminhar apoiado numa
bengala de fazer de conta. E ele ria-se.
Tinha
bigode como a maioria dos homens do seu tempo. Toda a vida foi agricultor,
labutando de sol a sol em meia duzia de pequenos terrenos onde produziu vinho, batatas, milho e o demais necessário
para alimentar a família. Sabia ler e tinha um pequeno escritório na frente da
casa, antes da adega, onde guardava papéis, livros e documentos. No fundo da gaveta da secretária andavam
perdidas algumas moedas do tempo dos reis.
“Isso
não vale nada”, comentava ao ver o meu interesse na esfinge de. D. Luís e D. Carlos.
Nem as moedas tinham valor, por isso estavam abandonadas numa gaveta, nem a
monarquia era regime admirado. Bem pelo contrário, aquela era uma casa de
republicanos. No alto da estante do escritório, Serafim Simões da Costa exibia
com orgulho o busto verde rubro da República. E ao lado a esfinge de Eça de
Queiroz.
Frequentava
a terceira classe quando uma estranha doença começou a reter o meu avô no
leito. No início não me preocupei. A ter em conta a minha experiência
acreditava que tudo se resolveria tomando comprimidos ou xaropes, experiência
que podia ser mais aterradora do que a picada de uma agulha. Odiava xaropes!
Fui
multiplicando as viagens pelo carreiro da missa, a caminho da escola, depois
entrei para o ensino secundário sem haver notícias de melhoras. Até que numa segunda-feira,
dia 3 de março de 1967, me disseram que não ia às aulas, mas para casa do meu
primo Luís, em Aveiro. Defendiam-me da dor, protegiam-me do trauma de uma
experiência fúnebre.
Não
foi assim que o entendi. Provavelmente porque era mais fácil alimentar a
revolta por me tomarem por fraco, do que enfrentar a dor. Senti-me enganado e à
tristeza juntou-se uma profunda desilusão. Perante os meus protestos e perguntas
insistentes os meus pais falaram-me da multidão que se juntou para a cerimónia
fúnebre, descreveram-me a emoção, o respeito de toda aquela gente a caminhar em
duas filas paralelas enquanto a banda filarmónica marcava o compasso. Muitos
levavam ramos de flores, muitas flores.
Os
meus pais nunca me falaram da existência de um deus capaz de distribuir os
mortos pelo céu, inferno ou purgatório. Nunca admitiram a existência de um senhor,
poderoso e omnipresente, a dirigir os destinos do universo. Nunca veneraram
santos ou cruzes. Explicaram-me, simplesmente, que tal como as plantas e os
outros animais cumprimos um ciclo de vida que se renova e multiplica com o nascer
de cada nova geração. Cada um de nós é importante, quando não mesmo decisivo,
porque é um elo essencial no prolongar de uma cadeia de vidas sucessivas. E de mortes.
Com
eles aprendi o significado, a importância e a beleza dos cemitérios.
Ensinaram-me a respeitar os mortos, os verdadeiros construtores do nosso mundo,
e a olhar com carinho as suas campas sem mistério. Não precisaram de palavras,
foi com gestos simples que me explicaram que misteriosa não é a morte, mas a
vida.
Belino
Costa