AS FEITICEIRAS DA MINHA RUA
Belino Costa
Era muito novo quando tomei contacto com o absurdo. Tive
o oculto por vizinho. Nasci e cresci numa rua marcada pela extraordinária
presença de duas feiticeiras, Ti Maria Peralta e Ti
Maria Virgem. Eram mulheres com fé e um especial conhecimento. Estavamos em
finais dos anos sessenta na que é hoje a Rua do Barroco, na Póvoa.
Ti Maria Peralta
Conheci melhor
Ti Maria Peralta que vivia em frente à casa dos meus avós, o que facilitou o
meu constante espanto. Vista pelos meus olhos infantis a Ti Maria Peralta era o
susto em pessoa, mas os mais velhos respeitavam-na e nunca ouvi ninguém
contestar os seus poderes contra o “mau-olhado”.
Vestida de negro dos pés à cabeça, exalava um intenso
cheiro a fumo à mistura com urina. Dizia-se que nem no verão apagava a
fogueira, onde fazia as refeições e exorcizava olhados alheios, queimando
plantas entre pingos de azeite. E quando precisava de libertar águas fazia-o
como então era comum entre as mais velhas, ia a um cantinho do quintal e abria
as pernas. Aliviava-se sem preconceito e se houvesse alguém por perto nem
chegava a dar conta da função, que as saias de tão compridas só deixavam ver a
ponta das tamancas.
Costumava observá-la nas suas andanças de curandeira
(ninguém se atrevia a chamar-lhe bruxa). Encostado ao muro do pomar ou em cima
de uma árvore, espreitava-a enquanto ela solenemente percorria os quatro
quantos do aido. Com um bebé entre os braços ia, de marco em marco, lançando
preces ao vento. Estudava-lhe os gestos, tentando perceber como é que ela “livrava”
os bebés do “mau-olhado”, essa doença metafisica que os levava a ficar
“augados”, magrinhos e sem apetite.
Durante alguns anos só de dia me atrevia a passar à
porta dela. Temia-a e julgava-a tão velha que a tinha na conta de imortal. O
medo foi sendo ultrapassado e um dia a minha mãe chamou-me para me dizer:
- Filho vais portar-te bem. Vem aí a Ti Maria Peralta
fazer-te um tratamento.
- Um tratamento! Mas porquê? - perguntei incrédulo.
- Porque ela faz questão – respondeu minha mãe – diz que
te vê muito magrinho e que deves estar “augado”. É uma atenção de vizinha, não
podemos dizer que não. Seria má criação.
E foi assim que um pedaço de toucinho aquecido em unto
passeou pelas minhas costas, cumprindo um percurso minucioso sublinhado por uma
ladainha imperceptível que acabou por se transformar num cântico de Avé Maria.
– Mal não te fez – concluiu mais tarde a minha mãe,
cansada de escutar os meus indignados protestos.
Depois de tamanha experiência mais interessado fiquei no
assunto e anos mais tarde decidi anotar conversas e segredos, recolher
informações, talvez escrever um tratado de feitiçaria. Usando a casa do avô
Serafim como posto de espionagem tentei descobrir receitas, lengalengas, gestos
e demais mistérios. Tudo na maior clandestinidade.
O diálogo seguinte é uma transcrição dessas notas tal
como foram escritas, em Março de 1970, no meu jornal caseiro, “ O Pirolito”:
“Estava à lareira quando entra a Ti Maria que vem
“endireitar”(1) a criada. Mas antes do trabalhinho foi tempo de conversa. Todos em roda do lume e a Ti Maria
diz:
– Olhem que eu não acredito em bruxarias, mas acredito
muito nas rezas. Ainda lá foi a Chica no outro dia para eu lhe tirar o
quebranto (2) e ela cai-me no meio do chão, agarra-se ao meu braço, começa a
morde-lo e a gritar…
– Eu sei estava lá e ela só ficou mais calma depois das
rezas darem efeito e agora não se lembra de nada.
– Pois é a vida…Mas os médicos não sabem nada!
Olhe que um dia, andava para ter a minha filha e uma
velha bateu-me três vezes nas costas…
– Foste tocada, (3) devias correr atrás dela e dizer:
“Toma lá o que me deste mais o que me fizeste”.
– Ó mulher, fiquei tão aflita que quase ia caindo. Por
isso a minha filha andou em médicos e eles não descobriram nada.
– Nesse caso só nós é que sabemos “destocar”. Ainda
agora me levaram um bebé para “desaugar” (4) e eu lá o arranjei com as
perninhas em cruz em cima do marco e fiz as minhas rezas, sendo preciso estar
em casa sempre ao meio-dia. Pois agora está gordo e bem disposto.
– Olha Maria
sabes uma coisa, vamos andando como podemos.
NOTAS
(1) Para endireitar é preciso comprar “esprit da vida”.
(2) “Quebranto” é um mau-olhado.
(3) “Tocada” quer dizer que sobre ela cairão grandes
males.
(4) “Desaugar” serve para tirar algo das crianças que as
faz emagrecer.”
Ti Virgem
Pequenina, misteriosa, sempre refugiada dentro de quatro
paredes a Ti Virgem (nunca lhe questionei o nome) era um enigma na outra ponta
da rua. Durante anos acreditei que só saia de casa para ir à missa e que tinha
um pacto secreto com deus.
Como vivia mais distante da minha casa surgia-me menos
ameaçadora, até porque não tinha o susto de encontrar o seu vulto negro
parecendo esvoaçar por cima dos batatais. Mas consegui observá-la em plena
actividade quando a mulher do meu vizinho, Ti Pedro, teve uma doença de pele
que lhe transformou uma parte da perna numa chaga de má catadura. Diziam ser
“zurpela” e para resolver o problema recorreram aos serviços da Ti Maria Virgem.
No caderno de apontamentos anotei então: “A Ti Maria
Virgem começou por pedir água, azeite, duas pedras e dois ramitos de oliveira,
e que rasgassem um dos melhores lençóis para panos.
Primeiro preparou a mistura de plantas numa panela, que
pôs ao lume onde queimou folhas de oliveira, sem parar de rezar. Depois aplicou
o cozinhado sobre o pano que cobria a ferida e embrulhou muito bem a perna com
as tiras rasgadas do lençol. E no dia seguinte a perna começou a mostrar
melhoras.”
Rendi-me, começando a olhar aquelas duas velhinhas com
um renovado respeito e, há que o confessar, com a prosápia de quem se julgava
livre de qualquer temor ou perigo, por se encontrar sob a proteção de duas guardiãs
poderosas.
Já vão distantes esses tempos infantis, em que não havia
televisão ou computador e os heróis eram todos de carne e osso. Passou quase
meio século, e só agora me interrogo se não foram essas feiticeiras que me
ensinaram a ser tolerante até para com o inexplicável. E, sobretudo, me
tornaram incapaz de acreditar em verdades totais, completas e irreversíveis.
Quem sabe se não foram elas que fizeram de mim um agnóstico?
Quem sabe se não foi feitiço?!
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