1 de dezembro de 2013

CRÓNICA: AS FEITICEIRAS DA MINHA RUA



AS FEITICEIRAS DA MINHA RUA
Belino Costa



Era muito novo quando tomei contacto com o absurdo. Tive o oculto por vizinho. Nasci e cresci numa rua marcada pela extraordinária presença de duas feiticeiras, Ti Maria Peralta e Ti Maria Virgem. Eram mulheres com fé e um especial conhecimento. Estavamos em finais dos anos sessenta na que é hoje a Rua do Barroco, na Póvoa.
Ti Maria Peralta
 Conheci melhor  Ti Maria Peralta que vivia em frente à casa dos meus avós, o que facilitou o meu constante espanto. Vista pelos meus olhos infantis a Ti Maria Peralta era o susto em pessoa, mas os mais velhos respeitavam-na e nunca ouvi ninguém contestar os seus poderes contra o “mau-olhado”.
Vestida de negro dos pés à cabeça, exalava um intenso cheiro a fumo à mistura com urina. Dizia-se que nem no verão apagava a fogueira, onde fazia as refeições e exorcizava olhados alheios, queimando plantas entre pingos de azeite. E quando precisava de libertar águas fazia-o como então era comum entre as mais velhas, ia a um cantinho do quintal e abria as pernas. Aliviava-se sem preconceito e se houvesse alguém por perto nem chegava a dar conta da função, que as saias de tão compridas só deixavam ver a ponta das tamancas.
Costumava observá-la nas suas andanças de curandeira (ninguém se atrevia a chamar-lhe bruxa). Encostado ao muro do pomar ou em cima de uma árvore, espreitava-a enquanto ela solenemente percorria os quatro quantos do aido. Com um bebé entre os braços ia, de marco em marco, lançando preces ao vento. Estudava-lhe os gestos, tentando perceber como é que ela “livrava” os bebés do “mau-olhado”, essa doença metafisica que os levava a ficar “augados”, magrinhos e sem apetite.
Durante alguns anos só de dia me atrevia a passar à porta dela. Temia-a e julgava-a tão velha que a tinha na conta de imortal. O medo foi sendo ultrapassado e um dia a minha mãe chamou-me  para me dizer:
- Filho vais portar-te bem. Vem aí a Ti Maria Peralta fazer-te um tratamento.
- Um tratamento! Mas porquê? - perguntei incrédulo.
- Porque ela faz questão – respondeu minha mãe – diz que te vê muito magrinho e que deves estar “augado”. É uma atenção de vizinha, não podemos dizer que não. Seria má criação.
E foi assim que um pedaço de toucinho aquecido em unto passeou pelas minhas costas, cumprindo um percurso minucioso sublinhado por uma ladainha imperceptível que acabou por se transformar num cântico de Avé Maria.
– Mal não te fez – concluiu mais tarde a minha mãe, cansada de escutar os meus indignados protestos.
Depois de tamanha experiência mais interessado fiquei no assunto e anos mais tarde decidi anotar conversas e segredos, recolher informações, talvez escrever um tratado de feitiçaria. Usando a casa do avô Serafim como posto de espionagem tentei descobrir receitas, lengalengas, gestos e demais mistérios. Tudo na maior clandestinidade.
O diálogo seguinte é uma transcrição dessas notas tal como foram escritas, em Março de 1970, no meu jornal caseiro, “ O Pirolito”:
“Estava à lareira quando entra a Ti Maria que vem “endireitar”(1) a criada. Mas antes do trabalhinho foi tempo   de conversa. Todos em roda do lume e a Ti Maria diz:
– Olhem que eu não acredito em bruxarias, mas acredito muito nas rezas. Ainda lá foi a Chica no outro dia para eu lhe tirar o quebranto (2) e ela cai-me no meio do chão, agarra-se ao meu braço, começa a morde-lo e a gritar…
– Eu sei estava lá e ela só ficou mais calma depois das rezas darem efeito e agora não se lembra de nada.
– Pois é a vida…Mas os médicos não sabem nada!
Olhe que um dia, andava para ter a minha filha e uma velha bateu-me três vezes nas costas…
– Foste tocada, (3) devias correr atrás dela e dizer: “Toma lá o que me deste mais o que me fizeste”.
– Ó mulher, fiquei tão aflita que quase ia caindo. Por isso a minha filha andou em médicos e eles não descobriram nada.
– Nesse caso só nós é que sabemos “destocar”. Ainda agora me levaram um bebé para “desaugar” (4) e eu lá o arranjei com as perninhas em cruz em cima do marco e fiz as minhas rezas, sendo preciso estar em casa sempre ao meio-dia. Pois agora está gordo e bem disposto.
 – Olha Maria sabes uma coisa, vamos andando como podemos.
NOTAS
(1) Para endireitar é preciso comprar “esprit da vida”.
(2) “Quebranto” é um mau-olhado.
(3) “Tocada” quer dizer que sobre ela cairão grandes males.
(4) “Desaugar” serve para tirar algo das crianças que as faz emagrecer.”
 Ti Virgem
Pequenina, misteriosa, sempre refugiada dentro de quatro paredes a Ti Virgem (nunca lhe questionei o nome) era um enigma na outra ponta da rua. Durante anos acreditei que só saia de casa para ir à missa e que tinha um pacto secreto com deus.
Como vivia mais distante da minha casa surgia-me menos ameaçadora, até porque não tinha o susto de encontrar o seu vulto negro parecendo esvoaçar por cima dos batatais. Mas consegui observá-la em plena actividade quando a mulher do meu vizinho, Ti Pedro, teve uma doença de pele que lhe transformou uma parte da perna numa chaga de má catadura. Diziam ser “zurpela” e para resolver o problema recorreram aos serviços da Ti Maria Virgem.
No caderno de apontamentos anotei então: “A Ti Maria Virgem começou por pedir água, azeite, duas pedras e dois ramitos de oliveira, e que rasgassem um dos melhores lençóis para panos.
Primeiro preparou a mistura de plantas numa panela, que pôs ao lume onde queimou folhas de oliveira, sem parar de rezar. Depois aplicou o cozinhado sobre o pano que cobria a ferida e embrulhou muito bem a perna com as tiras rasgadas do lençol. E no dia seguinte a perna começou a mostrar melhoras.”
Rendi-me, começando a olhar aquelas duas velhinhas com um renovado respeito e, há que o confessar, com a prosápia de quem se julgava livre de qualquer temor ou perigo, por se encontrar sob a proteção de duas guardiãs poderosas.
Já vão distantes esses tempos infantis, em que não havia televisão ou computador e os heróis eram todos de carne e osso. Passou quase meio século, e só agora me interrogo se não foram essas feiticeiras que me ensinaram a ser tolerante até para com o inexplicável. E, sobretudo, me tornaram incapaz de acreditar em verdades totais, completas e irreversíveis. Quem sabe se não foram elas que fizeram de mim um agnóstico?
Quem sabe se não foi feitiço?!

Sem comentários:

Enviar um comentário