Então o centro de Bustos
fervilhava de actividade. Nos cafés juntavam-se novos e velhos, uns jogavam
cartas, outras damas e xadrez. Nesses momentos de convívio falar da compra do Palacete
pelo povo da terra era um tema recorrente. A malta mais nova adorava mandar
bocas e brincar com a extravagância popular de comprar um velho palacete por
oito mil contos, “a pagar em três prestações”, sublinhavam alguns em sinal de desdém.
Como na aldeia não existia qualquer fábrica de fazer dinheiro a miudagem
brincava com a maluquice que seria juntar tão grande quantia de dinheiro em apenas
dois anos. Os jovens, não sei se por birra ou por razões hormonais, não
acreditavam na ousadia de homens e mulheres de Bustos que se atiravam a uma
tarefa complexa e difícil, assumindo grandes responsabilidades, apenas porque acreditavam
na solidariedade humana. Muitos apoucaram a folha de papel, uma circular à
população, onde se explicava o desafio:
Circular
BUSTUENSES
Levamos ao conhecimento de todos os nossos conterrâneos a Obra Social que
se está a concretizar em Bustos:
- Localizar no mesmo edifício a casa do Povo, Posto Médico da Previdência,
a Biblioteca da Fundação Gulbenkian, um Infantário e um Salão de Dia para a
terceira idade.
Para essa finalidade adquirimos, por compra, o Palacete do Visconde de
Bustos e seus anexos por 8 000 000$00, pagável em três prestações anuais. A
primeira e já liquidada em 15 de Maio de 1980 de 3 000 000$00, a segunda
prestação, a liquidar em 15 de Maio de 1981, será igualmente de 3 000 000$00.
A terceira e última prestação de 2 000 000$00, que tem o seu vencimento a
15 de Maio de 1982, pensamos ser possível fazer o seu pagamento em 18 de
Fevereiro de 1982, para nessa data ser celebrada a escritura de compra.
Confiamos no Bairrismo dos nossos conterrâneos residentes e emigrantes, e
com o apoio de Indústria e Comércio local.
Estamos certos de que o povo de Bustos irá colaborar em massa para a
criação de uma obra social digna do progresso da sua terra.
A HORA É DECISIVA!
O MOMENTO É DE ACÇÃO!
Até 30 de Abril próximo aguardamos a contribuição de todos os Homens e
Mulheres de Bustos
A Comissão Instaladora da Associação de Beneficência e
Cultura de Bustos *
A crença no ”bairrismo dos nossos conterrâneos residentes e emigrantes” aliada à fé no ”apoio de
Indústria e Comércio local” bastava para que um grupo de homens se empenhasse
num projecto visando o interesse comum. Estavam cheios de razão porque a solidariedade atravessou continentes e foram raros os que não contribuíram para
a concretização do sonho. Mal o povo tomou posse do edifício e se iniciaram
as obras de recuperação nem os mais cépticos deixaram de ser tocados pela onda
de energia positiva que atravessou o, até então, abandonado edifício mandado
construir por António Duarte Sereno. O pátio e jardim do Palacete, com as
suas festas, espectáculos e quermesse, passaram a ser o centro de convívio e
angariação de fundos. E para o êxito do projecto foi fundamental o empenho e
dinamização de muitos homens e mulheres em múltiplas frentes. Vender bolos,
petiscos, senhas e até beijinhos, não faltou arte, engenho e trabalho para ir
juntando os tão desejados escudos. Paralelamente, no palco erguido por Manuel
Pedreiras, iam decorrendo espectáculos, onde não faltou o Rancho e Banda da
Mamarrosa, o Manuel Miranda, o Amadeu Mota, os Faraós e muitos outros.
Todos fomos chamados a colaborar. Eu
tive a honra de ser interpelado por esse ser humano magnifico, um senhor de
cabelos brancos, homem doce, sempre apaixonado pela sua terra chamado Hilário
Costa. Pegou-me no braço e usando de uma cumplicidade bem antiga, assumiu a
postura de um verdadeiro comandante ordenando:
-
Fala lá com os teus amigos artistas e vê o que nos consegues arranjar. Já sabes
que não pagamos nada a ninguém pois estamos precisados de dinheiro. Mas
assegura-lhes que não passarão fome ou sede e que poderão usar as nossas casas para
o merecido descanso.
Ao tempo trabalhava no jornal de espectáculos “Se7e”, em Lisboa, pelo que a minha modesta condição de jornalista
não me permitia supor que tivesse condições para convencer algum grande nome da
música portuguesa a vir apresentar-se a Bustos a troco de cama e mesa. Mas como
podia hesitar perante tão honesto pedido? Tocado pelo idealismo daquele homem,
pela sua inabalável fé na capacidade humana em dar as mãos, aceitei o desafio. Prometi-lhe
que iria dar o meu melhor.
Não foi preciso chegar a Lisboa para
perceber que estava metido numa grande alhada. Como convencer um grupo de
músicos a trabalhar por amor à causa do povo de Bustos? Explicar-lhes que
tinham de se fazer à estrada a troco de uma bucha e algumas palmas, mas
correndo também o risco de alguns apupos.
Estávamos em plena euforia do que
ficaria conhecido como o “Boom do Rock Português”. A vida cultural portuguesa
rejubilava com o fim do período revolucionário. A democracia parecia
definitivamente estabilizada e a cultura popular jovem saltava para a
televisão, rádio e páginas dos jornais. Muitas foram as propostas musicais, os
estilos, as tendências, os grupos. A agregar esta diversidade apenas um
denominador comum, a necessidade de cantar em português.
Os Trovante viviam o exaltante momento
da consagração quando, em nome do superior interesse da minha terra, interpelei
o manager da banda, desafiei-o para um espectáculo gratuito em Bustos. O Miguelão
olhou-me lá das alturas e eu, sem o deixar retorquir, atirei-lhe com a beleza
da ideia, de como podia ajudar uma pequena comunidade a cumprir um sonho. E o
mais espantoso é que em vez de um não, ele me respondeu que tal só seria
possível se tivessem um outro concerto que ficasse em caminho. De outra forma não
conseguiria pôr toda a equipa em andamento, mais de uma dúzia de pessoas entre
músicos e técnicos, a que havia a juntar um camião com equipamento. Por outro
lado era necessário que todos concordassem em trabalhar sem receber salário.
Razão tinha Hilário Costa em acreditar
na generosidade humana. Eu passei a acreditar na generosidade dos grandes
artistas. Uma apresentação nos arredores do Porto foi o móbil que permitiu que
os Trovante se apresentassem no pátio do palacete, na noite de 7 de Agosto de
1981. A caravana antecipou a viagem por um dia e o grupo apresentou-se perante
uma assistência entusiasmada numa noite luminosa e quente. Não receberam
salário mas tiveram o privilégio de ajudar uma boa causa, comer um saboroso
leitão e, por uma noite, partilharem os nossos tectos, pois nem sequer exigiram
ir dormir a qualquer pensão ou hotel.
Assim se cumpriu a vontade de Hilário
Costa, mas já um novo desafio se impunha porque no ano seguinte, a 18 de
fevereiro de 1982, o povo queria selar a compra. Razão de sobra para se
organizar um magnífico espectáculo de gala…
(Essa é história que fica para outro
dia.)
Belino Costa
*A Comissão Instaladora era constituída
por: Alcino Caetano da Rosa; Amaral Simões dos Reis Pedreiras; Fernando Luzio;
Hilário Simões da Costa; Jorge Nelson Micaelo; José Luís Martins; José Coelho;
Manuel Marques Liberal; Miguel Barbosa; Óscar Aires dos Santos; Rodolfo dos
Reis; Manuel Martins
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