Corria o ano de 2008 quando me
encontrei com o Dr. Jorge Micaelo na sua casa em Bustos. Pude então revisitar o
velho consultório, que mantinha equipado em memória de uma vida dedicada à
medicina. Mostrou-me velhos instrumentos, fotografias, livros e falou-me de
alguns dos momentos mais marcantes da sua vida como médico e cidadão.
Aqui fica esse registo e a minha
sentida homenagem.
Belino Costa
1-Estudos
Fiz a Escola Primária aqui
na casa ao lado
da minha casa.
Fui para a Escola
aos sete anos,
o meu pai
foi-me levar. A professora sentou-me numa cadeira ao fundo da sala e não mais me dirigiu
palavra. Ao intervalo
voltei para casa
e o meu pai
perguntou-me, “o que é que estás aqui
a fazer?”, respondi que
me tinha
vindo embora porque
não estava na Escola
a fazer nada.
Lá me
obrigou a voltar… Esta é uma história
de que me
lembro bem.
Fui fazer a 4ª classe
a Oliveira do Bairro.
Estive dois anos
no colégio de Oiã e depois
fui para o Liceu
de Aveiro, onde estive cinco anos e
fiz sempre parte
do orfeão.
Dos 120 alunos que em Julho de 1939 fizeram exame
de admissão à Universidade
eu fui um
dos 50 que passei. Tinha
18 anos.
Aos 20 anos fiz a inspeção militar e fiquei apurado. Se reprovasse um
ano já
sabia que seria incorporado. Lá fiz o meu curso sem sobressalto e terminei em
1945.
Os anos
de Coimbra (1939- 45) valeram ao jovem
Jorge Nelson Simões Micaelo bem mais
do que o curso
de medicina. No convívio
estudantil coimbrão ele
descobriu a importância do
associativismo e o prazer do canto.
“Orfeonista e futebolista”, nos dizeres do livro de fim de
curso que
aproveitamos para aqui
recordar:
Jorge Simões Micaelo
Nem
é loiro nem moreno,
Desde
a pele à cor do pelo,
Todo
ele é caroteno.
É menos
magro que
gordo,
Nem
é baixo, nem
é alto;
Canta,
assobia e ao falar,
O “R” tem um
ressalto.
Tem processos
infalíveis
P’ra nos
fazer afinar;
Certos
ditos, certas
graças
Tudo
só… p’ra chatear.
No cinema,
às matinées
Sempre
escolhe as vizinhanças:
Umas lindas outras feias
Umas bravas…outras mansas.
É orfeonista e futebolista
Uma boa peça…
Menina,
aqui para nós:
- Interessa?
Ao velho
“Almirante” com
um abraço
oferece
Ramos
Lopes
2- Médico da aldeia
Em 1946, como podia frequentar o Hospital da Universidade
até Fevereiro
o que é que
eu fiz? Pensei: Eu
vou ser médico
da aldeia, vou é aproveitar
estes meses e vou para
a maternidade praticar
partos. Assim
fiz, o que me
deu um novo alcance na minha vida profissional.
Fiz centenas de partos…
Comecei a fazer medicina
por aqui,
por Ouça,
depois Palhaça
e Nariz. Estive também
em Oliveira
do Bairro. Mais
tarde o Dr. Pato
pediu-me porque é que
não me
especializava como a anestesista que
precisava de um. Lá
voltei para Coimbra para aprender.
Sempre gostei de ser médico mesmo no
tempo das avenças. Agora
toda a gente
pensa em
dinheiro, naquele tempo
não. Havia uma ligação
com as famílias
que agradeciam o meu
trabalho com milho, galinhas
e outros bens.
3-Futebol
Nos meus tempos
de estudante, era
eu, o Neo Pato,
o irmão, o Sérgio e outros,
o pessoal de Bustos… e queríamos, nas férias, jogar futebol…
Era director o Manuel Tavares da Silva, então
um rapaz
novo, quando
fundámos os Azuis de Bustos, que se inscreveram logo
nos campeonatos
oficiais e ajudaram Bustos
a desenvolver-se no campo desportivo. Eu
vinha de Coimbra com o engenheiro Pato, vínhamos de comboio para jogarmos
futebol e assim foi…Quando me formei
entendi que era
chegada a altura
de fundar a União
Desportiva de Bustos, porque sempre me preocupou a união do povo da minha terra. Com o Lino Rei foi o que fizemos, daí as duas mãos
unidas debaixo da bola.
4-Associação de Beneficência e Cultura
(ABC)
Todos os anos
se faziam as comemorações do 18 de Fevereiro
e havia duas comemorações, a oficial e a
popular. Agora
só há a oficial.
Este ano,
por exemplo,
não houve sequer
um jantar. Entristeceu-me
muito e vou dizer
porquê: É que
em 1978 houve um
jantar do 18 de Fevereiro
esteve lá o vice-presidente da Câmara, o Dr. Alberto da Palhaça
que no final
fez um discurso
onde nos
disse reparem nos votos
do povo de Bustos,
eles votam em
todos os Partidos.
Eu senti aquelas palavras
como um
sinal de desunião
e foi aí que
comecei a pensar em
fazer qualquer
que fosse a favor
da união de todo
o povo. A ideia de criar
o ABC começou com
as palavras do Dr. Alberto…
Andei a pensar em
fazer uma reunião
e em quem
é que deveria convidar
para essa reunião em minha casa, quem e em que dia.
Cheguei à conclusão que só havia um dia em que ninguém
iria negar vir a minha casa, era o 1 de Novembro,
o dia de ir
ao cemitério. Convidei o Rodolfo, o falecido Tenente José Coelho,
o Miguel Barbosa, o Manuel Pernagorda, o Fernando Luzio, o José Luís, o Alcino
Caetano da Rosa, o Hilário
Costa, o Padre
Teixeira, o Liberal e todos
vieram.
Comecei assim: Tenho muita pena meus senhores mas em Bustos nós só temos dinheiro, mais nada! Vocês já
fizeram alguma coisa por
Bustos pelo desenvolvimento de Bustos,
pela união do
povo de Bustos?
Disse isto para
os espicaçar e resultou. E fomos reunindo em
segredo, avançando a ideia de comprarmos
o Palacete do Visconde.
Eu conhecia a família do Cura Mariano e
fui lá com
uma comissão, foi num domingo de Páscoa
e a família estava reunida em Águeda. Antes
tínhamos feito uma reunião
em minha
casa e tínhamos chegado
à conclusão que
conseguíamos reunir seis
mil contos.
Comecei por perguntar
se estavam dispostos a vender.
Vendemos sim senhor,
disseram, e eu apresentei a proposta dos seis
mil contos,
que foi aceite.
Só não
falámos nas condições de pagamento.
Mas na segunda-feira
de Páscoa telefonei a perguntar
se tinham mudado de opinião. Disseram que não e eu respondi que
também nós
mantínhamos a intenção, mas que não tínhamos falado
nas condições de pagamento.
Pagam isso em
3 anos, dois mil contos por ano… e nós, sim senhor, aceitámos.