23 de junho de 2010

MARÉ ALTA: RECORDAÇÕES... O PUXAR DE INCONTÁVEIS PONTAS





Fato notório e até certo ponto folclórico, na vida quotidiana do centro de Bustos ao tempo de minha adolescente infância eram as andanças do ti Pardal, com seus patos lhe fazendo companhia. Mas, o que mais marcou esse personagem no meu imaginário, foi uma prática arraigada nos costumes do meio: a temporária “ida aos pássaros”.

Uma das culturas populares, em que se envolvia boa parte dos jovens adolescentes, principalmente do segmento mais pobre da população, era a “apanha de pássaros” no tempo do milho (eu fui um dos que, seguindo esta cultura do meio, apanhei pássaros que faziam um bom acompanhamento de batatas, favas, ervilhas, vagens de feijão e até um gostoso arroz de festa. Minha mãe fez algumas caçarolas, com que toda a família se deliciou).


Para a “caça aos pássaros” - sombrias, boiadeiras, flosos, o escrachado pardal (o pássaro) - existia todo um processo de engenho e arte. Tinha-se à mão, algumas alternativas de instrumentalização e ação (a capoeira, por exemplo), mas a mais comumente utilizada era o costelo (ou custelo?) conhecido em alguns lugares da língua portuguesa (Brasil) como ratoeira. Tratava-se de uma engenhoca de arame composta de diversas partes presas entre si, que quando desarmado tinha aspecto de um simples objeto com o formato de duplo meio arco. Quando armado, tendo como item importante desta ação, um par de molas, o costelo assumia um formato levemente ovalado então aposto, devidamente coberto, num monte de terra adequadamente preparado, inclinado, deixando aparecer somente uma pequena haste vergada, presa ao seu meio, à qual se prendia, por sua vez, com uma tira de palha seca, a isca – uma familiar e receptiva lagartixinha branca - catada nos pés de milho. A bicada na isca, “detonada” por qualquer um daqueles tipos de aves abundantes à época, em nosso meio ambiente, logo desarmava a popular invenção de caça, prendendo o frágil ser voador que, muitas vezes, logo sucumbia pela pancada da curvada haste móvel do desarme, movimentada fortemente, pela ação das molas ora descontraídas. Estes artefatos existiam livremente à venda em diversas casa comerciais, mas boa parte deles era produzida artesanalmente.


Ti Pardal (que ironia de apelido... Ou era nome mesmo?), era o maior especialista que conheci, na fabricação artesanal desses artefatos de caça. Falava-se que ele possuía mais de cem unidades em condições de uso permanente. Segundo comentários da época, feitos por pseudo conhecedores do assunto, seus costelos eram de muito boa qualidade e precisão (Franklin Pinto pode confirmar isso).

O folclore criado em torno deste personagem, especificamente, neste campo de ação, foi muito rico em nuances de curiosidades. Existiam moleques que se especializaram na serpilha dos costelos de Ti Pardal. Muitos deles ficavam à sua espreita, em plenas cinco horas da manhã, para segui-lo até os locais onde seria armado o maior lote de artefatos do gênero, jamais visto em qualquer outro lugar.


Ti Pardal, possuía toda uma técnica própria de ação. Logo que terminava de concluir a tarefa de armação, o que demandava um bom tempo, ele passava a se movimentar num raio de cerca de 200 metros, munido de uma atiradeira das muitas confeccionadas pelo próprio, a fim de espantar as aves famintas, ocultadas nas cercanias, direcionando-as para o centro da área em que armara seus costelos. Neste cerco, Ti Pardal igualmente prestava atenção a possíveis presenças de serpilheiros que se avistados, corriam o sério e fatal risco de uma dolorida pedrada de funda, nas nádegas. Não obstante, a serpilha de seu patrimônio de caça era bastante notória e nosso personagem passava - pelo que era comentado - parte de seu tempo fabricando artesanalmente, mais e mais objetos de caça não só para seu uso, como também para venda e a “festa” de apetites dos sedentos serpilhadores profissionais do meio. Vale dizer que – porque não – a serpilha era uma parte muito forte desse folclore cultural.



Repensando o assunto muitos anos depois, concluí que aquele cidadão, já de certa idade, vivia esse período de tão anormal empreendimento, não só pelo prazer do passa tempo, mas também pela oportunidade única no ano, de ter em sua casa uma maior e melhor fartura de especial e saboroso alimento. Quero acreditar que o mesmo não tinha a mínima consciência da depredação que causava. Não só ele, como os demais. Pelo menos foi esta a conclusão de meu sentimento.

Certa vez, li numa revista de preservação ambiental que com a generalização de uso das variadas pesticidas descobertas e introduzidas no campo, estas mataram mais aves e outras espécies de seres vivos, no relativo espaço de tempo em que foram descontroladamente utilizadas até serem proibidas, do que em toda a existência secular do folclore comunitário daquela caçada cíclica, somada a todos os outros tipos de caça campestre. Creio num certo exagero de tal afirmativa, mas, de qualquer modo, se estes dados não eliminam os efeitos de nossos passados procedimentos, pelo menos amenizem nossos resquícios complexos de alguma culpa. Contudo isso, ou apesar de tudo isso, rendo minha homenagem póstuma a Ti Pardal... Um personagem de Bustos a ser também lembrado.


Quarenta anos depois, quando voltei à santa terrinha, esta cultura de depredação, tinha sido extinta, não sei se por algum despertar de consciência, ou mais em função de severos procedimentos penais dos poderes constituídos que um dia acordaram determinados a acabar com esta prática de contra cultura ambiental vinda, possivelmente, de longínquas eras, trazidas pelos nossos ancestrais.

Um carinhoso abraço a todos os conterrâneos
(Aristides Arrais, Brasil)
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Nota 1. - É reposto o postal "RECORDAÇÕES... O PUXAR DE INCONTÁVEIS PONTAS", retirado por um critério pessoal seguido no alinhamento do NB, o que não invalida o pedido deesculpas ao seu autor, aos leitores e comentadores.
Nota 2. - Ilustração possível com fotos da col. Bustos d’Outrora.
srg

3 comentários:

  1. Anónimo08:34

    Milton Pires deixou um novo comentário na sua mensagem "RECORDAÇÕES... O PUXAR DE INCONTÁVEIS PONTAS (Aris...":

    As memórias que o Sr. Aristides tem posto por escrito são muito interessantes.

    Alguém consegue especificar a localização da azenha que ilustra este artigo? Será mesmo em Bustos?

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  2. Mais um oportuno texto do Aristides Arrais.
    Quem não se lembra do tempo de ir aos costelos e das sombrias gordinhas, que eram tão apetecíveis?
    No meu bloguinho pessoal (actualmente em banho maria), num post de 7 de Abril de 2009, falei delas, dando ao texto o título "os pequenos bandeirantes e o genocídio das sombrias".
    Está tudo lá, por muito grande que tivesse sido o pequeno mundo das nossas infâncias.
    Basta ir aqui:
    http://bloguedooscar.blogspot.com/2009/04/os-pequenos-bandeirantes-e-o-genocidio.html

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  3. Anónimo02:42

    Não posso precisar ao certo, mas guardo na memória, que um dia perambulando pelos confins do barroco ou do cabeço, vi uma azenha montada na riacho que corria por aquelas bandas. Seria esta foto a comprovação de tal existência? A. C. Arrais

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